PAULINA CHIZIANE

 (1955), ficcionista, considerada a primeira romancista moçambicana. Sensível em especial à problemática da mulher na sociedade moçambicana. Os seus romances (p. ex. Balada de Amor ao Vento, 1990, Niketche, uma História de Poligamia, 2002) inspiram- -se na arte de contar estórias, recuperando a tradição oral, a sua linguagem e universo mágico. Põe em destaque o choque entre o mundo tradicional e o moderno.

NIKETCHE

A minha sogra andou esvoaçando entre casas e caminhos. Visita as novas noras, os

netos, e distribui rebuçados e chocolates. Conquista-os. Visita os irmãos, filhos, famílias. Busca aliados e consensos. Fala de boca em boca. Busca votos de confiança. Faz

a campanha a favor da família alargada, as noras devem ser loboladas. Não é de mim

que eu falo, dizia ela. Fala em nome das crianças que crescem marginalizadas, sem conhecer as suas origens. Fala em nome daquelas mulheres pescadas no deserto da vida,

produzindo almas que engrandecem esta família, mas que vivem à margem da sombra

que lhes pertence. São chamadas de mães solteiras, confundidas com as divorciadas e as

adúlteras, por viverem longe da sombra do seu homem. Grita não à monogamia, esse

sistema desumano que marginaliza uma parte das mulheres, privilegiando outras, que

dá tecto, amor e pertença a umas crianças, rejeitando outras, que pululam pelas ruas.

Grita não contra o novo costume de ter uma esposa à luz e várias concubinas, com filhos

escondidos. Os meus netos marginalizados pela lei clamam por reconhecimento. O sangue da grande família deve ser reunido na sombra da grande árvore dos antepassados.

O meu filho é belo, dizia ela. As mulheres não resistem aos seus encantos. O meu filho

tem sangue forte, em cada contacto produz um filho. O meu filho é um rizoma. É bambu.

Estende-se pelos campos, alastra-se, multiplica-se. O meu filho tem destino de rei, de

patriarca. O pai dele só teve poucos filhos, três apenas, mas Deus deu-nos o Tony para

vingar a fertilidade da família estendendo o nosso grande nome pelos quatro cantos do

mundo. Vai ter com o irmão padre e confronta-o. Por causa das vossas doutrinas as

nossas famílias africanas não passam de montanhas isoladas boiando nas nuvens. Tu,

padre, és filho da poligamia, filho da terceira mulher. Como podes tu condenar a poligamia que te trouxe ao mundo? Afasta as tuas más influências do meu filho. Deixa-o em

paz com as suas esposas e filhos, nós africanos somos felizes assim. Todas aquelas

mulheres devem ser loboladas.

A minha sogra fez de si uma flecha. Insurgiu-se contra os bons costumes da família

cristã e tornou-se agente de regresso às raízes. Não encontrou nenhuma resistência.

O ciclo de lobolos começou com a Ju. Foi com dinheiro e não com gado. Lobolou-se

a mãe, com muito dinheiro, num lobolo-casamento. As crianças foram legalmente reco-

nhecidas, mas não tinham sido apresentadas aos espíritos da família. Era preciso trazê-

-las do tecto da mãe para a sombra do patriarcal num acto de lobolo-perfilha, uma

forma de legitimá-las uma vez que nasceram fora das regras de jogo de uma família

polígama. Depois fez-se lobolo da Lu e dos filhos. As nortenhas espantaram-se. Essa

história de lobolo era nova para elas. Queriam dizer não por ser contra os seus costumes

culturais. Mas envolve dinheiro e muito dinheiro. Dinheiro para os pais, dinheiro para

elas, e para os filhos. Dinheiro que faz falta para comer, para viver, para investir. Quando

se trata de benesses, qualquer cultura serve. Elas esqueceram o matriarcado e disseram

sim à tradição patriarcal. Passámos três meses a andar de festa em festa. Era importante

que todos os lobolos fossem feitos numa rajada, antes que o Tony mudasse de ideias. Nos

lobolos todos introduzimos uma inovação: a certidão de lobolo, com todas as cláusulas

contratuais, menos aquela parte que fala de assistentes conjugais em caso de incapacidade do marido. Ficaria um bocado imoral, não acham? Toda em papel almaço, com

timbre e tudo, dactilografada, assinada por todos os membros presentes nas cerimónias.

Com tantas assinaturas, aquilo ultrapassava uma certidão, parecia mais uma petição.

Estamos na era da escrita, não estamos?

Fiquei de coração deprimido. O meu marido estava completamente retalhado. Retalhados todos os meus bens, a nossa segurança social, a nossa reforma, o nosso conforto

que estava a ser jogado na terra como um punhado de sal numa panela de água. Eu

partilho o pão e o vinho em comunhão. Partilho o marido por cinco, partilhamos um

amante, a Lu e eu. Ah, amor profundo. Tu me retalhas o coração e me destroças em cada

sopro. Vida, tu me obrigas a receber migalhas de amor que só a mim pertence. Fazes-me

morrer devagarinho, célula a célula, e me sangras gota a gota. Adeus, meu marido total,

meu amor de intimidade. Ah, vida! Fazes-me aceitar esta mordaça só para ter o Tony

por perto. Se eu digo não a toda esta confusão, o meu amor se espanta.

Tivemos a nossa primeira reunião formal, o parlamento conjugal, inaugurado pela

minha sogra e pelas tias já velhotas, para nos darem lições e tudo o que quiséssemos

saber sobre o amor polígamo.

– O meu Tony, ao lobolar cinco mulheres, subiu ao cimo do monte – diz a minha

sogra. – Ele é a estrela que brilha no alto e como tal deve ser tratado. E tu, Rami, és a

primeira. És o pilar desta família. Todas estas mulheres giram à tua volta e te devem

obediência. Ordena-as. Castiga-as se for preciso. Tu é que deténs o trono e o ceptro.

Exerça o teu poder sobre elas, submeta-as ao teu comando. Tu és a rainha desta casa.

Sinto-me promovida na hierarquia da tirania. Dão-me um chicote a que chamam

ceptro, para açoitar todas as infelizes que cruzarem a minha estrada. Mas não vou açoitar ninguém. Vou guardar este bastão num baú e atirá-lo bem para o fundo do mar.

– Para começar, vocês devem elaborar uma escala conjugal. O marido deve ficar uma

semana por cada uma, numa escala rotativa. Quem menstruar na semana de escala

deve notificar-se imediatamente. Não podem conspurcar o corpo do Tony com as impu-

rezas das vossas menstruações. Isso pode-lhe provocar aquelas doenças que fazem os

testículos ganhar o tamanho das abóboras.

Aquelas velhas damas têm rouxinóis nas gargantas e chilreiam as vozes mórbidas

das cativas. Aquelas bocas desdentadas foram sugadas pelas pancadas. Os lábios nunca

conheceram beijos, só lamentos.

– Devem servir o  vosso marido de joelhos, como a  lei manda. Nunca servi-lo

na panela, mas sempre em pratos. Ele não pode tocar na loiça nem entrar na cozinha.

Quando servirem galinha, não se esqueçam das regras. Aos homens se servem os

melhores nacos: as coxas, o peito, a moela. Quando servirem carne de vaca, são para ele

os bifes, os ossos gordos com tutano. É preciso investir nele, tanto no amor como

na comida. O seu prato deve ser o mais cheio e o mais completo, para ganhar mais forças e produzir filhos de boa saúde, pois sem ele a família não existe.

Não nos rimos daquilo, mas apetece-nos. Guardamos silêncio perante a ladainha

com que sempre adormeceram as mulheres ao longo dos tempos ..

– Vocês, as mulheres modernas, têm o mau hábito de alimentar os homens de qualquer maneira. Guardam a comida na geleira por dias e dias. Um homem deve ser alimentado com comida fresca. É preciso acender uma fogueira em cada dia. Não dêem

batatas cozidas no dia anterior, porque incham os testículos dos homens, principalmente dos rapazes em crescimento. Não comam nunca a cabeça de peixe, nem de vaca,

nem de cabrito, que é comida de homem. A cabeça do animal representa a cabeça da

família. A cabeça da família é o homem.

– Na ausência do pai, toma o comando da família o filho varão mais velho, mesmo

que seja um bebé, é um líder, é o chefe da família por substituição.

– Façam uma escala conjugal. Uma semana em cada casa é quanto basta para conviver. Dormir e despertar no mesmo lugar é saudável. O homem não deve percorrer

o perímetro da cidade em cada dia, porque é desgastante, pode morrer cedo. Tem muitas vantagens: em casos de aflição, todas saberão o lugar certo onde o poderão procurar.

Essas vozes são sal na brisa, roendo lentamente como salitre. Elas só sabem aquilo

que a dor ensina. Não conhecem outro mundo senão a própria noite. E colocam a noite

aos nossos olhos como único saber ao seu alcance.

Ah, Tony. Já não estou sozinha no teu encalço. Agora somos cinco. Quero ver se nos

escapas com a tua esperteza de rato.

(CHIZIANE, Paulina. Niketche. Uma História de Poligamia.

Lisboa: Caminho, 2002, p. 123–127)

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