UNGULANI BA-KA-KHOSA

 (1957), nome tsonga de Francisco Esaú Cossa, ficcionista, com um trabalho notável no domínio da ficção histórica (Ualalapi, 1987), de grande originalidade, em que a História (o  registo documental, historiográfico) dialoga com a  tradição oral, fornecendo ao mesmo tempo um suporte para a fantasia ficcional. As suas narrativas breves exploram também as vicissitudes do espaço urbano (Orgia dos Loucos, 1990).

MORTE INESPERADA

– O que é que se passa?

– Morreu um homem.

– Em que andar?

– No décimo, mamã –, e os dois moços desapareceram. E depois vieram outros, e a

gritaria aumentou. A velha tentou lançar-se às escadas. O corpo não a ajudou. Em vez de

se preocupar de novo com o andar sinistrado teve o cuidado de perguntar pelo nome do

filho, com a nítida preocupação de não querer ouvir o nome do filho. Ao chegar ao quinto

andar, após inúmeras perguntas, informaram-na, longe de saberem que se tratava da mãe.

Nada mais fez que sentar-se e esvair as lágrimas que saltavam dos olhos encovados e cansados com tal intensidade que em poucos segundos atingiram os seios flácidos, e continuaram a descer, em jorros contínuos, pelo vestido, ensopando-o e colando-o ao corpo.

Minutos depois, levada pelo pressentimento infundado de que a morte tocara outra porta,

subiu as escadas, recordando-se, no entanto, como todas as mães abaladas pelo infortúnio

de um filho perdido em plena força da idade, do dia em que largara a enxada e percorrera,

com as mãos e joelhos assentes na terra, o atalho que levava a casa, sentindo o filho bulindo

no ventre. As mulheres acorreram no seu encalço e levaram-na à cabana principal. Foi o

princípio duma semana de dores intensas ante o espanto e o medo das velhas que a largaram no fim do primeiro dia, cientes de que o demónio que carregava não mais viria, pois

de tantas cenas macabras a que já puderam assistir nunca presenciaram cena igual, em

que uma mulher de tanto gritar passara a uivar como os cães que pela noite adentro vão

lançando maus presságios nas casas trancadas. O curandeiro, chamado a propósito, confessara, após três dias e três noites de trabalho intenso, ser incapaz de esconjurar os maus

espíritos que dela se tinham apossado. E os uivos preencheram os dias e as noites até que

Simbine, no sétimo dia, assomou por entre as coxas da mãe que desmaiou no momento

em que acabara de lançar um uivo tão lancinante que as pessoas que cercavam a casa

enterraram as mãos e os rostos na areia branca, enquanto outras, mais distantes, atiraram-se às mangueiras que cobriam o átrio.

Terás uma morte maldita, filho, disse-lhe, anos depois, o filho já adolescente, quando

este recusava ir à escola, invocando razões já invocadas pelo avô, quando em redor do 

fogo que lançava chispas intermitentes a noite polvilhada de estrelas, afirmara que os

pretos viveram séculos sem o quinino e o livro, e que a sua vitalidade ia de gerações em

gerações, e sua História corria na memória fértil dos velhos que habitaram estas terras

antes dos homens da cor do cabrito esfolado entrarem com o barulho das suas armas, a

sua língua e os seus livros.

– O tempo é outro, meu filho.

– As raízes ainda assentam na terra mãe. Não me ensinaste há tempos que o elefante

não esquece, o lugar de repouso?

– Tens razão. Mas afirmei também que o que não acaba é um milagre. Deves ir à

escola, filho.

– Não vou, mãe. E não te esqueças que uma galinha de poupa dá outras galinhas de

poupa.

– O tambor deve estar esticado, filho.

– Nao te preocupes, mãe.

E preferia correr por entre os arbustos do verde sem fim, nas manhãs e tardes, como

uma gazela, livre, saltando os ramos e troncos asparsos pelo chão húmido e seco, e penetrar no capim alto e verde, aspirando a limpidez do ar e ouvindo as sonatas não pautadas dos pássaros multicolores que gorjeavam, ao findar da tarde com o sol vermelho

queimando as copas verdes das árvores altas e baixas que se alongavam por terras sem

fim; ou derrubava, com fúria animal, as mulheres que vinham do rio, limpas, com os

seios como maçalas verdes coladas à pequena blusa molhada que não chegava ao umbigo,

retirando rapidamente a capulana que punha a descoberto o corpo nu donde exalava o

odor extasiante do púbis. Depois, os ramos que se quebravam e os estertores que se

despegavam dos corpos misturavam-se aos trinados que enchiam o espaço incomensurável, numa harmonia inaudita. Combalidos, com os corpos ainda estirados no capim,

sentiam a noite entrar, com outros compassos e outras músicas mais profundas, como

que vindas das entranhas da terra. Era a hora das almas acordarem e deambularem

pelas casas, atirando as suas vozes maléficas e benéficas. O meu mundo, mãe, é esta

terra selvagem, dizia. É a minha escola.

(BA KA KHOSA, Ungulani. “Morte Inesperada”,

In SAÚTE, Nelson, As Mãos dos Pretos. Antologia do Conto Moçambicano.

Lisboa: D. Quixote, 2007, p. 426–429)

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