A literatura moçambicana e a obra de Mia Couto
Nossa abordagem acerca da obra de Mia Couto inicia-se com uma
investigação sobre a relação entre essa e a história da literatura moçambicana, que, como veremos, é ainda um objeto recente de estudos.
Antes, porém, recuaremos um pouco mais o nosso foco, tecendo algumas considerações sobre as chamadas literaturas africanas de língua
portuguesa, área de estudos que mais se tem dedicado ao estudo da
obra coutiana, e também sobre a historiografia literária. Em seguida,
examinaremos as contribuições de quatro autores para a história da
literatura moçambicana e procuraremos avaliar essas iniciativas, ainda
incipientes e breves.
Nomenclaturas e expressões ideológicas
“Creio que está chegando o momento em que a autonomia será
total, e deixará de se recorrer a estas expressões genéricas” (Margarido,
1980, p.10). A “profecia” de Alfredo Margarido, que integra o artigo
de abertura de seu livro Estudos sobre literaturas das nações africanas
de língua portuguesa, publicado há mais de vinte anos, dizia respeito
à autonomia das diferentes literaturas africanas de língua portuguesa
– moçambicana, angolana, cabo-verdiana, são-tomense, guineense –
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com relação à literatura portuguesa. Essa vem sendo gradualmente
ampliada, uma vez que, atualmente, os currículos escolares dos países
africanos de língua portuguesa contemplam o estudo das respectivas
literaturas nacionais; além disso, é grande o corpus de produção ensaística que se dedica à literatura moçambicana, angolana ou cabo-verdiana
de forma autônoma.
No âmbito das universidades brasileiras, essas literaturas são estudadas dentro do grande conjunto das literaturas africanas de língua
portuguesa, que é a nomenclatura mais usual para as disciplinas de
graduação que contemplam o estudo desses sistemas literários. Uma
breve incursão pelo histórico das nomenclaturas indicará o avanço que
significa essa denominação geral.
Durante a vigência do colonialismo, a crítica literária referia-se
a essas literaturas como “literatura da África portuguesa” (Oliveira,
1962) ou “literatura ultramarina” (César, 1967) ou, ainda, “literatura
ultramarina de Portugal”. Autores hoje representativos do sistema
literário moçambicano, como Luís Bernardo Honwana, por exemplo,
eram referidos ironicamente na crítica colonial. Rodrigues Júnior
(1966, p.160) chega a tratar Honwana por “ratão”,1
e execra seu Nós
matamos o cão tinhoso!, obra publicada em 1964,2 como um mau livro,
fruto da inexperiência de quem não é ainda nem homem, nem escritor3
1 No sentido de “engraçado, extravagante, ridículo, exótico” (Aulete [200-]).
2 A edição brasileira de Nós matamos o cão tinhoso! é de 1980 (Honwana, 1980).
3 “Luís Bernardo tomou uma posição – a posição que se toma sempre quando se
tem pouco mais de vinte anos... Mesmo assim, houve quem o festejasse [...].
Não se pense que é apenas Luís Bernardo a servir-se dos mesmos equilíbrios
para se fazer acreditar em histórias que são só histórias – histórias de ratão que
se esforça por convencer os leitores do que nelas foi criado para servir um ponto
de vista! [...] Triste espetáculo dá esse escritor a quem o lê. [...] Começa Luís
Bernardo por mostrar uma falta de humildade que impressiona, quando, na
contra-capa do seu Cão Tinhoso, diz: ‘Não sei se realmente sou escritor.’ Não é,
com certeza. Será um dia. Agora, não o é ainda. [...] Falta-lhe ainda a experiência,
que a idade lhe há-de trazer,a vivência dos problemas da sua terra, o contacto
com os homens. [...] O que ‘O Cão Tinhoso’ conta são histórias – histórias só.
Mas nem mesmo como histórias se podem aceitar. Não são verdadeiras. [...]
O mundo que Luís Bernardo nos quer mostrar, não é um mundo verdadeiro.
Constitui mesmo trabalho que muito lamentamos. “As mãos dos pretos” é um
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– apesar de ser ele um “belo moço”. Também a poesia de Craveirinha
– o mais festejado poeta moçambicano –, por sua vez, foi despojada
de qualquer traço de nacionalismo:
Para além da lenda que se criou em torno do escritor, importa referir
o que vale o seu testemunho lírico, limpo de facciosismos e de gangas
estranhas à literatura. [...] Se a sua poesia começa e nunca deixa de ser
“declaratória” – como se o facto de ele ser homem descendente de uma
mistura de branco e negro, fosse aval para uma validade literária – a verdade é que, nela, José Craveirinha nunca se liberta das sombras de outros
poetas que o antecederam. Quando fala do céu para os meninos negros
estamos a ouvir um poeta venezuelano [...]; e quando fala do drama do
negro, está sempre atrás de cada poema um Langston Hughes, um Nicolas
Guillén, um Senghor e até está, por sinal, um poeta português – Geraldo
Bessa Victor. Quer dizer: a poesia de José Craveirinha, pelo menos a publicada aqui, no “Chigubo” e noutras revistas que divulgaram a negritude
poética entre nós, recorda-nos sempre a caricatura de um filme de Capra,
em que havia um compositor musical que compunha música de Chopin...
(César, 1967, p.75)
Na visão da crítica colonial, a “literatura ultramarina” produzia
obras “condenáveis”, ou por mostrarem uma África “não verdadeira”,
visto que denunciava os abusos do colonialismo em terras africanas,
ou por não ser reconhecida como voz representativa de seu país. Os
autores “condenados” por essa crítica, porém, no caso de Moçambique, formam os pilares de uma literatura de cunho nacional, hoje
reconhecidamente moçambicana.
conto que não devia ter sido escrito. [...] Todo o conto [’Nhinguitimo’] é de uma
maldade tão grande, que nem parece de Luís Bernardo, que sabemos ser – assim
nos disseram – um belo moço.
‘Nós Matamos o Cão Tinhoso’ é um livro mau. E é um livro mau, porque conduz
o leitor à presença de um mundo inventado. E o leva a conclusões que hão-de
ser razões de um julgamento injusto. [...] Luís Bernardo há-de crescer mais, em
idade, em pensamento e em boa razão de espírito, para ser primeiro do que tudo
um Homem e depois um Escritor com responsabilidades, para o acreditarem,
então, de outra maneira. Agora, conhecemos apenas nele o moço que está fora
de toda a realidade...” (Rodrigues Junior, 1966, p.155-61, grifos do autor)
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Posteriormente, as literaturas produzidas na África de língua portuguesa passaram a receber a denominação de “literatura negra”, por influência do movimento da Negritude.4Alfredo Margarido (1980, p.43), em
1962, referia-se a elas como “poesia negra de expressão portuguesa”; o
mesmo autor (ibidem, p.105), porém, chega a rever sua posição, e passa
a referi-las, a partir de 1978, como “literaturas africanas de expressão
portuguesa“, nomenclatura que passou a utilizar desde então.
Russell G. Hamilton (1981, p.20-1), por sua vez, examina as várias
designações desse conjunto de literaturas: literaturas africanas de expressão portuguesa; literaturas africanas de ou em língua portuguesa;
literaturas de língua oficial portuguesa; literaturas lusófonas, e opta
por esta última como a mais adequada, pois, no seu entender, seria a
designação mais livre de conotação colonialista.
Manuel Ferreira (1987, p.15) – autor do primeiro manual publicado
no Brasil sobre essas literaturas5
–, porém, lembra que “a própria palavra ‘lusofonia’ para nós, portugueses, e para os escritores africanos não
está isenta de suspeitosas contaminações dos tempos do colonialismo”.
4 A Negritude foi um movimento reivindicador que surgiu entre africanos que
estudavam na França, no Quartier Latin (bairro central de Paris). Entre seus
precursores estão o senegalês Léopold Sedar Sénghor e o francês Aimée Césaire,
que, juntamente com outros estudantes, fundaram, em 1934, a revista L’Etudiant
Noir (O Estudante Negro). Trata-se de um movimento de intelectuais negros,
que recusavam a política colonial de assimilação. Seus objetivos eram “buscar o
desafio cultural do mundo negro (a identidade negra africana), protestar contra a
ordem colonial, lutar pela emancipação de seus povos oprimidos e lançar o apelo
de uma revisão das relações entre os povos para que se chegasse a uma civilização
não universal como a extensão de uma regional imposta pela força – mas uma
civilização do universal, encontro de todas as outras, concretas e particulares”
(Munanga, 1988, p.43-4, grifos do autor). Uma das principais críticas da Negritude reside no fato de ela “veicular um essencialismo negro, como se o fato de ter
a pele negra pudesse deflagrar uma identidade comum; além disso, foi tachado de
ser excessivamente intelectual e de ter um caráter burguês” (Damásio, 2004, p.1).
A despeito disso, a Negritude permaneceu viva durante décadas na literatura; em
Moçambique, seus principais representantes são os poetas Noémia de Souza e
José Craveirinha.
5 Segundo Patrick Chabal (1992, p.247), Literaturas africanas de expressão portuguesa, de Manuel Ferreira, é “o primeiro estudo em português da literatura dos
cinco países africanos de língua portuguesa”.
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Ferreira refere-se ao fato de que a ideia da lusofonia é herdeira direta
do utópico Quinto Império, preconizado por Pe. Antonio Vieira e
Fernando Pessoa. No Dicionário de termos da lusofonia6
(Cristóvão,
2005, p.652-3), o verbete “Lusofonia” traz essa filiação:
Na esperança e na expectativa de um messianismo sebastianista
mergulham as raízes da utopia do Quinto Império, entre o pessimismo do
Tratado da Quinta Monarquia – Infelicidades de Portugal Profetizadas, de
Frei Sebastião de Paiva, e o optimismo de Vieira, nos Sermões, História do
Futuro, Clavis Prophetarum. Para Vieira, era preciso “converter e reformar
o Mundo, florescendo mais que nunca o culto divino, a justiça, a paz e
todas as virtudes cristãs”, como se preconiza na História do Futuro.
Fernando Pessoa reformulou este sonho criando, na lógica da sucessão dos Impérios da Antiguidade, um futuro para o Quinto Império
português, na Mensagem, no Livro do Desassossego e em textos que deixou
inéditos, hoje em grande número publicados. E, quanto ao Império, ele
já não é de natureza religiosa, mas cultural. [...]
É este Quinto Império cultural, a que chamamos hoje Lusofonia, uma
pátria de humanismo e diálogo, com as raízes mergulhadas nas ideias de
Vieira, Pessoa e outros, sem pretensões de estabelecer qualquer hegemonia
de dominação. Até porque, como dizia outro sonhador, milenarista do
Espírito Santo, Agostinho da Silva, este Quinto Império partilhado não
prevê a existência de um qualquer Quinto Imperador.
Um império, ainda que sem imperador, é uma estrutura centralizadora e não democrática. Não sem razão, alguns críticos se levantaram
contra a ideia da lusofonia. Para Alfredo Margarido (apud Cristóvão,
6 Esse interessante dicionário foi feito com a colaboração de 344 pesquisadores de 19
nações diferentes. A formação do grupo conta com 206 pesquisadores portugueses,
48 brasileiros, 16 moçambicanos, 12 guineenses (sendo 10 da Guiné-Bissau e 2 da
Guiné), 12 são-tomenses, 11 angolanos, 6 cabo-verdianos, 3 timorenses, 3 galegos,
3 alemães, 3 franceses, 2 italianos, 1 espanhol, 1 senegalês, 1 romeno, 1 polonês e
1 ganense, 1 checo e 13 pesquisadores sem identificação de nacionalidade. O fato
de que 59,88% deles sejam de nacionalidade portuguesa ilustra a ideia, apontada
por Alfredo Margarido e Manuel Ferreira, da soberania portuguesa no campo da
lusofonia – ideia essa, entretanto, terminantemente negada pelos pressupostos
ideológicos que embasam o conceito.
24 ana cláudia da silva
2005, p.654), o discurso da lusofonia é uma dissimulação dos “traços
brutais” do passado colonialista, uma tentativa de recuperação da antiga
hegemonia portuguesa: “pretende-se manter o colonialismo, fingindo
abolir o colonialista, graças à maneira como o colonizado é convidado a
alienar a sua própria autonomia para servir os interesses portugueses”.
Também o escritor Antonio Tabucchi (Cristóvão, 2005, p.654), tradutor
italiano da obra de Fernando Pessoa, vê a lusofonia como uma substituição, no imaginário português, do poder imperialista: para ele, Portugal
encontra, na lusofonia, “terreno fértil para uma invenção meta-histórica
como esta, que funciona como sucedâneo, no imaginário colectivo”.
A questão de uma denominação sem entraves ideológicos para o
conjunto das literaturas produzidas em português na África está ainda
longe de ser solucionada. Manuel Ferreira (1987, p.16) insiste no termo
“literaturas africanas de expressão portuguesa”:
É claro que se tivermos de designar individualmente cada uma das cinco
literaturas, o problema está facilitado ou mesmo inteiramente resolvido:
Literatura cabo-verdiana, são-tomense, moçambicana, etc. A complicação,
porém, surge quando há necessidade de empregarmos o plural, englobando
as cinco literaturas: Literaturas africanas, de quê? De língua inglesa? Francesa? Literaturas africanas de/ou em língua portuguesa – evidentemente não
se pode desejar que seja de outro modo. Mas aparece também quem opte
pelo enunciado “expressão portuguesa”, a cujo emprego se opõem alguns
com o argumento de que a palavra “expressão” encerra em si mesma um
conteúdo europeu, neste caso um conteúdo “português”, e sendo assim tal
designação deverá ser evitada ou banida. Mas a verdade é que tal modo de
designar tem uma tradição longa por via francesa e também de utilização no
espaço onde se fala a língua portuguesa; África, Brasil, Portugal, etc. Basta
lembrarmos os títulos de algumas antologias publicadas a partir dos anos 50,
como, por exemplo, a de Mário de Andrade7
: Antologia da poesia negra de
expressão portuguesa (1958). Independentemente disso, no entanto, há o fato
mais importante de a palavra “expressão”, no contexto verbal do enunciado
“Literaturas africanas de expressão portuguesa”, salvo devido respeito, não
ser portadora de conteúdo colonial, mas sim de nomeação. “Expressão” é o
7 Mário Pinto de Andrade (1928-1990): escritor e político angolano.
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ato de exprimir. O ato de dizer. Literaturas que, sendo africanas, tendo um
conteúdo africano, são expressas, são ditas em língua portuguesa, o que por
si só afasta toda e qualquer ideia de reserva mental colonial ou colonialista.
Socorramo-nos de Hjelmeslev e da sua proposta – a dos dois aspectos em
relação ao discurso: o plano da expressão e o plano do conteúdo. A palavra
“expressão” no referido enunciado (Literaturas africanas de expressão
portuguesa), de harmonia com aquele teórico, aponta exclusivamente para
o significante e não para o significado...
A obra de Ferreira, publicada em Portugal em 1977, foi a primeira
a discorrer sobre essa problemática, que seria, depois, abordada por
outros pesquisadores, com posições divergentes.
Atualmente, os estudiosos mais proeminentes dessas literaturas no
Brasil – Laura Padilha, Benjamin Abdala Júnior, Rita Chaves, Maria
Nazareth Soares Fonseca, Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco, entre
outros – referem-nas como “literaturas africanas de língua portuguesa”,
que, ao que parece, é o termo mais “neutro” dentre os propostos anteriormente. É no âmbito delas que a literatura moçambicana encontra
algum espaço. Dizemos isso porque, nos programas de pós-graduação,
não há linhas de pesquisa específicas para cada uma das literaturas africanas de língua portuguesa isoladamente; os trabalhos publicados sobre
a literatura de Moçambique trazem como palavras-chave a expressão
“literaturas africanas de língua portuguesa”. Na Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (PUC Minas), instituição pioneira nos estudos
africanos, esses são desenvolvidos no âmbito do programa de Literaturas
de Língua Portuguesa; na Universidade de São Paulo, a literatura moçambicana encontra lugar na área de Estudos Comparados de Literaturas
de Língua Portuguesa – o que obriga os pesquisadores dali a adotarem
necessariamente a perspectiva comparada para estudá-la.