LUÍS BERNARDO HONWANA

 (1942), nome literário de Luís Augusto Bernardo Manuel, ficcionista, ativista político. A sua obra, limitada a uma coletânea de contos (Nós Matámos o Cão-Tinhoso, 1964), é considerada como uma das mais marcantes da literatura moçambicana. Num estilo coloquial, mas invulgarmente denso e emotivo, desenvolvem-se as histórias que por um lado suportam uma mensagem ideológica, circunscrita ao contexto da resistência ao sistema colonial, por outro lado exprimem as constantes universais de arte e humanidade, de alcance simbólico (o tema da aprendizagem dum jovem que passa pelo erótico, pela violência e pela adquirição de consciência, o tema da marginalidade e solidariedade etc.).

NÓS MATÁMOS O CÃO TINHOSO

O Cão-Tinhoso tinha uns olhos azuis...

O Cão-Tinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham brilho nenhum, mas eram

enormes e estavam sempre cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho. Metiam

medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa

sem querer dizer.

Eu via todos os dias o Cão-Tinhoso a andar pela sombra do muro em volta do pátio

da Escola, a ir para o canto das camas de poeira das galinhas do Senhor Professor. As

galinhas nem fugiam, porque ele não se metia com elas, sempre a andar devagar, à procura de uma cama de poeira que não estivesse ocupada.

O Cão-Tinhoso passava o tempo todo a dormir, mas às vezes andava, e então eu

gostava de o ver. Com os ossos todos à mostra no corpo magro. Eu nunca via o CãoTinhoso a correr e nem sei mesmo se ele era capaz disso, porque andava todo a tremer,

mesmo sem haver frio, fazendo balanço com a cabeça, como os bois e dando uns passos

tão malucos que parecia uma carroça velha.

Houve um dia que ele ficou o tempo todo no portão da Escola a ver os outros cães a brincar no capim do outro lado da estrada, a correr, a correr, e a cheirar debaixo do rabo uns aos

outros. Nesse dia o Cão-Tinhoso tremia mais do que nunca, mas foi a única vez que o vi com

a cabeça levantada, o rabo direito e longe das pernas e as orelhas espetadas de curiosidade.

Os outros cães às vezes deixavam de brincar e ficavam a olhar para o Cão-Tinhoso.

Depois zangavam-se e punham-se a ladrar, mas como ele não dissesse nada e só ficasse

para ali a olhar, viravam-lhe as costas e voltavam a cheirar debaixo do rabo uns aos

outros e a correr.

Duma dessas vezes, o Cão-Tinhoso começou a chiar com a boca fechada e avançou

para os outros quase que a correr, mas com a cabeça muito direita e as orelhas mais

espetadas do que nunca. Quando os outros se viraram para ver o que ele queria, teve

medo e parou no meio da estrada.

Os outros cães ficaram um bocado a pensar no que haviam de fazer por ele estar a

olhar para eles daquela maneira. É que o Cão-Tinhoso queria ir meter-se com eles.

Depois o cão do Senhor Sousa, o Bobí, disse qualquer coisa aos outros e avançou

devagar até onde estava o CãoTinhoso. O Cão-Tinhoso fingiu não ver e nem se mexeu

quando o Bobí lhe foi cheirar o rabo: olhava sempe em frente. O Bobí,depois de ficar

uma data de tempo a andar em volta do Cão-Tinhoso, foi a correr e disse qualquer coisa

aos outros - o Leão, o Lobo, o Mike, o Simbi, a Mimosa e o Lulu – e puseram-se todos a

ladrar muito zangados para o Cão-Tinhoso. O Cão-Tinhoso não respondia, sempre

muito direito, mas eles zangaram-se e avançaram para ele a ladrar cada vez mais de alto.

Foi então que ele recuou com medo, e voltando-lhes as costas, veio para a Escola, com

o rabo todo enfiado.

Quando passou por mim ouvi-o a chiar com a boca fechada e vi-lhe os olhos azuis,

cheios de lágrimas e tão grandes a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem

querer dizer. Mas ele nem olhou para mim e foi pela sombra do pátio da Escola, sempre

com a cabeça a fazer balanço como os bois e a andar como uma carroça velha, para

o canto das camas de poeira das galinhas do Senhor Professor.

Os outros cães ainda ficaram um bocado a ladrar para o portão da Escola, todos

zangados, mas voltaram para o capim do outro lado da estrada para continuar a correr,

a rebolar, a fingir que se mordiam uns aos outros, a correr, a correr e a cheirar debaixo

do rabo uns dos outros.

De vez em quando o Bobí olhava para o portão da Escola e, lembrando-se do CãoTinhoso, punha-se a ladrar outra vez. Os outros, ao ouvi-lo, deixavam de brincar

e punham-se também a ladrar, muito zangados, para o portão da Escola.

(...)

O Cão-Tinhoso tinha a pele velha, cheia de pelos brancos, cicatrizes e muitas feridas,

e em muitos sítios não tinha pêlos nenhuns, nem brancos nem pretos e a pele era preta

e cheia de rugas como a pele de um gala-gala. Ninguém gostava de lhe passar a mão

pelas costas como aos outros cães.

A Isaura era a única que gostava do Cão-Tinhoso e passava o tempo todo com ele, a

dar-lhe o lanche dela para ele comer e a fazer-lhe festinhas, mas a Isaura era maluquinha, todos sabiam disso.

A Senhora Professora já tinha dito que ela não regulava lá muito bem e que o pai

a havia de tirar da Escola pelo Natal.

A Isaura não brincava com as outras meninas e era a mais velha da segunda classe.

A Senhora Professora zangava-se por ela não saber nada e dar erros na cópia, e dizia-lhe

que só não lhe dava reguadas porque sabia que ela não tinha tudo lá dentro da cabeça.

Quando ia para o estrado ler a lição não se ouvia nada e a gente dizia –. «Não se ouve 

nada, não se ouve nada» –, e a Senhora Professora dizia que os meninos da quarta classe

não tinham nada que ouvir. Então os meninos da segunda classe começavam a dizer:

«Não se ouve nada, não se ouve nada». A Senhora Professora zangava-se e fazia uma

bronca dos diabos. Por isso, no intervalo, as outras meninas faziam uma roda com a

Isaura no meio e punham-se a dançar e a cantar: «Isaura-Cão-Tinhoso, Cão-Tinhoso,

Cão-Tinhoso, Tinhoso, Isaura-Cão-Tinhoso, Cão-Tinhoso, Tinhoso». A Isaura parecia

que não ouvia e ficava com aquela cara de parva, a olhar para todos os lados à procura

de não sei que, como dizia a Senhora Professora.

(HONWANA, Luís Bernardo. “Nós matámos o cão tinhoso”

In Nós Matámos o Cão Tinhoso. Porto: Afrontamento, 1972, p. 9–11, 12–13)

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