AUTO-RETRATO

De português tenho a nostalgia lírica

de coisas passadistas, de uma infância

amortalhada entre loucos girassóis e folguedos,

a ardência árabe dos olhos, o pendor

para os extremos: da lágrima pronta

à incandescência súbita das palavras contundentes,

do riso claro à angústia mais amarga.

De português, a costela macabra, a alma

enquistada de fado, resistente a todas

as ablações de ordem cultural e o saber

que o tinto, melhor que o branco,

há-de atestar a taça na ortodoxia

de certas vitualhas de consistência e paladar telúrico.

De português, o olhinho malandro, concupiscente

e plurirracial, lesto na mirada ao seio

entrevisto, à nesga de perna, à fímbria de nádega,

a resposta certeira e lépida a dardejar nos lábios,

o prazer saboroso e enternecido da má-língua.

De suíço tenho, herdados de meu bisavô,

um relógio de bolso antigo e um vago, estranho nome.

(KNOPFLI, Rui. Mangas verdes com sal, 1969, In Obra Poética.

Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003, p. 259) 

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