A produção de Mia Couto
Os autores que procuraram pensar a formação da literatura moçambicana consideraram o período que vai das suas primeiras manifestações até a independência nacional. A maior parte da produção posterior
a 1975, que é a mais rica e vasta, ficou de fora das classificações propostas; integrá-las à história literária nacional de forma sistematizada é
um trabalho que ainda está por fazer. Vale lembrar que os estudos que
mencionamos sobre a história dessa literatura foram escritos, ainda, nos
primeiros anos de seu desenvolvimento. O de publicação mais recente
é o artigo de Pires Laranjeira, de 2001, seguido pela tese de Manoel de
Souza e Silva; essa, contudo, embora tenha sido publicada em 1996,
resultou da tese de doutorado do autor, defendida em 1990. Assim,
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os dois estudos de Pires Laranjeira são as propostas mais recentes em
torno dessa temática; é neles, apenas, que a obra de Mia Couto aparece
como um marco na história literária do seu país.
Mia Couto, cuja produção literária inicia-se em 1983, com a publicação dos poemas de Raiz de orvalho, encontra-se fora das considerações de Manuel Ferreira e de Fátima Mendonça. O autor mereceu
apenas uma rápida menção no trabalho de Manoel de Souza e Silva
(1996, p.136), que o aponta, entre outros, como garantia da “fartura
e qualidade das safras vindouras”. Pires Laranjeira (1995a, p.262),
por sua vez, ao referir-se ao livro de contos Vozes anoitecidas (Couto,
1986), aponta Mia Couto como “fautor de uma mutação literária em
Moçambique, provocando polémica e discussão acesas”. Esse autor
aponta ainda, como vimos, o romance Terra sonâmbula (Couto, 1995)
como marco final do período pós-independência – afirmação polêmica,
visto que se trata de uma fase
muito rica e complexa e que tem vários marcos: as polémicas sobre o cânone
literário, a criação da Associação dos Escritores Moçambicanos – AEMO
(1982), o surgimento da geração Charrua (onde pontificam nomes importantes como Ungulani Ba Ka Khosa, Eduardo White, Armando Artur,
Suleiman Cassamo etc.). (Noa, 2009 [informação pessoal])34
Afora essas referências insipientes, Laranjeira também dedica a Mia
Couto um capítulo inteiro de seu manual, intitulado “Mia Couto, sonhador de verdades, inventor de lembranças”, no qual explora a citada polêmica gerada por ocasião da publicação de Vozes anoitecidas (Couto, 1986):
Esses dois poetas [José Craveirinha e Luís Carlos Patraquim, que assinam os dois prefácios de Vozes anoitecidas] avalizaram textos que haveriam
de provocar polémica em Moçambique, pelo facto de não se aceitar, nalguns
meios, que se pudesse criar uma linguagem simuladora da oralidade, eloquência e ingenuidade populares, mas requintadamente construída, como língua literária própria (de Mia Couto e de Moçambique). Principal objecção: ninguém
raciocina nem fala como nos contos de Vozes anoitecidas e, por isso, certas
34 Informação obtida em nosso Exame de Qualificação.
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liberdades, como a criação descomplexada de neologismos, comprometia a
adesão de amplas massas de leitores. Daí que tal caminho para a literatura moçambicana fosse desaconselhado. (Laranjeira, 1995b, p.313, grifos do autor)
Essa preocupação – ou polêmica, como dá conta Laranjeira – não
se confirmaria com o tempo: Mia Couto ganhou um número cada
vez maior de leitores, tanto dentro como fora do seu país, e uma das
qualidades primeiramente valorizadas na sua prosa é justamente a
linguagem inventiva, na senda de James Joyce, Guimarães Rosa e
Luandino Vieira. Tal criatividade, segundo Laranjeira (1995b, p.314),
é “típica de escritores colonizados, terceiro-mundistas, que procuram
afirmar uma diferença linguística e literária no interior da língua do
colonizador...”. Além dessas considerações, Laranjeira (1995b) aponta
quatro elementos que compõem o que ele chama de “modo de moçambicanidade” inscrito na obra coutiana:
a) a criatividade da linguagem;
b) o realismo na composição das ações e dos caracteres;
c) a intromissão do imaginário ancestral, que transforma esse
realismo em “realismo animista” (expressão usada pelos angolanos
Pepetela e Henrique Abranches);
d) o humor, que comparece em seis instâncias: na intriga, nas
situações/acontecimentos, nos antropônimos, na narração (modo de
contar), na enunciação e na linguagem.
Vale lembrar que, embora esses traços sejam marcantes na obra
de Couto, são insuficientes para que os definamos como índices de
moçambicanidade, visto que são generalizantes.35
O artigo publicado por Pires Laranjeira em 2001, é intitulado, lembramos, “Mia Couto e as literaturas africanas de língua portuguesa”.
35 No que diz respeito à moçambicanidade, vale mencionar o trabalho de Gilberto
Matusse (1993), A construção da imagem de moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa. Segundo o autor, uma vez que
a literatura moçambicana constituiu-se a partir da europeia – especialmente
portuguesa – a moçambicanidade deve, necessariamente, opor-se ao espírito
assimilacionista, negando as práticas de escrita da portugalidade e recuperando
estratégias textuais de ruptura com os modelos da matriz europeia.
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A revisão da historiografia literária moçambicana empreendida pelo
autor precede a consideração do lugar de Mia Couto dentro da literatura de seu país. Laranjeira (2001, p.196) lembra que Couto começara
sua escrita literária pela poesia, com a publicação de Raiz de orvalho
(1983), seguindo o mesmo rumo da literatura moçambicana, que por
muitos anos careceu de narrativas. Em seguida, Mia Couto dedica-se
às crônica e aos contos, publicados inicialmente em jornais e, anos
depois, reunidos em volumes. Só mais tarde, em 1992, é que surge seu
primeiro romance, Terra sonâmbula (Couto, 1995).36
Nesse artigo, Laranjeira (2001, p.198) enfatiza a ideia apresentada
anteriormente de que Vozes anoitecidas (Couto, 1986) é “reconhecidamente um livro fundador de uma reordenação literária, à semelhança
do que sucedera, em Angola, em 1964, com Luuanda, de José Luandino Vieira”. Essa reordenação literária passa, segundo o autor, pela
modernidade estrutural e simbólica do romance Terra sonâmbula e
por um obsessivo processo de recriação verbal e cultural, que reside
principalmente no léxico:
A inovação linguística de Mia Couto reside fundamentalmente no
léxico, como procurou mostrar Perpétua Gonçalves [...], no final de
1997. Para conclusão semelhante aponta o artigo de Paulo Faria [...], que
exemplifica, sintaticamente, com os clíticos á esquerda do verbo (ex.: “o
bicho se arrasta”) e o emprego dopronome complemento indirecto em vez
do complemento directo (ex.: “ouvíamos a baleia mas não lhe víamos”).
Nesse artigo, o autor explica, com argumentação lógica e precisa, como a
escrita de Mia Couto se apropria de modos típicos da oralidade.
A (re)criação verbal, com neologismos e inovações sintáticas (que se
encontrariam também no português do Brasil), advém do gozo da língua
e de aproveitar o contacto entre várias delas, mas também da necessidade
de criar e relatar novas realidades, rurais e urbanas, numa língua literária
que, sendo urbana e cosmopolita, retoma práticas orais com origem no
enraizamento da ruralidade. (Laranjeira, 2001, p.202)
36 Referimos aqui à edição brasileira, de 1993, que utilizamos neste trabalho.
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Parece, contudo, que a maior contribuição da literatura de Mia
Couto à historiografia literária moçambicana seja a abertura de
caminhos de criação que passam pelo fantástico, pelo humor, pelo
drama, pela ternura e pela crítica. Além disso, Pires Laranjeira
ressalta que
o discurso de Mia Couto entrelaça culturas e registos diversos, num
equilíbrio que permite falar do racismo, da guerra, da vida e da morte, do
amor e do ódio, da política e do comércio de almas, sempre com o gosto
de contar desempenhando o papel de farol do leitor, redefinindo os seus
gostos e visões de mundo, como se a ficção pudesse devolver à realidade
a fantasia da verdade. (ibidem, p.203)
Afora essas considerações de Laranjeira, os demais historiadores da
literatura moçambicana, como lembramos, não fazem outras referências a Mia Couto, certamente pelo fato de que a produção mais densa
do autor – os romances – teve seu crescimento após a publicação dos
textos mencionados.
Publicações mais recentes, como a de Macedo & Maquêa (2007),
ao tratar do percurso formativo da literatura moçambicana, referem os
autores aqui abordados – no caso, Fátima Mendonça e Pires Laranjeira
–, sem, contudo, dar uma contribuição mais explícita à historiografia
já existente, no sentido de complementá-la com a inclusão das produções contemporâneas de Moçambique – trabalho esse que, conforme
assinalamos, está ainda por fazer.
Como balanço deste Capítulo 1, temos a observar que a literatura
de Mia Couto ocupa na história de literatura moçambicana, antes de
tudo, o papel de aglutinadora das tendências que a precederam. Em
seu primeiro livro de poemas, lemos a busca de identidade e de construção da futura nação moçambicana, inscrita no poema de abertura
do volume, “Identidade”:
Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
[...]
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Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato
Morro
No mundo por que luto
nasço
(Couto, 1983, p.13)
Em “Manhã”, o desencanto repleto de ironia ganha destaque nos
seguintes versos:
A vida (ensinaram-me assim)
deve ser bebida
quando os lábios estiverem já mortos.
Educadamente mortos.
(ibidem, p.15)
Também a reflexão sobre o passado colonial encontra sua expressão
em “Colonos”:
Desde que chegaram
ficou sem repouso a baioneta
ficou sem descuido a palmatória
e os chicotes tornaram-se
atentos e sem desleixo.
[...]
Trouxeram-nos a luta
sem trégua
e da carne do vencido,
durante séculos,
fizeram silêncio e cinza.
[...]
Nós éramos tribo
carvão aceso nos altos fornos
e pelo gesto escravo em nossas mãos
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se poliram os minerais
se alinharam caminhos-de-ferro
se uniram pontes
fazendo morrer abismos e torrentes
transpiraram de vapor as grandes fábricas
e uma emaranhada teia
recobriu a nossa dimensão
despovoando-nos
adiando a nossa vida
por incontáveis vidas.
[...]
Nos idiomas vários
enrolámos sílabas submersas
clandestinos rios turbulentos
enroscaram-se nos lagos adormecidos.
Colocámos o sonho no arco
e dele fizemos flecha certeira
e transportámo-nos no vento
como se fôssemos semente derradeira
Para sermos homens
Desocupamos o silêncio
E com um firmamento de esperança
Cobrimos o rosto ferido da nossa pátria.
(ibidem, p.34)
Vemos, nesse poema, ecos amargurados de um país desfeito pela
colonização; mesmo as supostas melhorias guardaram, ali, as perdas
irreparáveis de uma vida e organização social agora desmantelada.
Os sonhos, contudo, não desfaleceram, e aguardaram, adormecidos,
o tempo da recuperação da liberdade.
Em meio a poemas líricos de temática amorosa, vemos, já nessa
primeira obra de Couto, sinais da luta empreendida pelo povo moçambicano e de comemoração entusiástica da vitória finalmente alcançada
com a independência do país, em 1975; é desse ano o poema “País”:
Terra perfumada
de vitória
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barco recém-largado
no mar da esperança.
(ibidem, p.48)
Sua obra seguinte, Vozes anoitecidas (Couto, 1986), reúne contos nos
quais já prevalecem os traços indicados por Pires Laranjeira, fundando
o que o crítico chamou de “reordenação literária”, tendo como traços
fundamentais de renovação a recriação linguística, o humor, a mistura de
heranças culturais distintas, o maravilhoso de situações em que a fantasia
completa e beneficia a realidade (e a não realidade) desejada.
Para além destas inovações, Mia Couto tem também o mérito de
levar a literatura moçambicana para além dos limites de sua nação,
dando a conhecer ao mundo todo, pelas inúmeras traduções de sua
obra, os modos moçambicanos de ser e de viver, de pensar a realidade e de dizê-la. Na sua esteira, outros autores conseguiram também
prestígio e reconhecimento, tais como Paulina Chiziane, Nelson Saúte,
Vergílio de Lemos e outros. Essa projeção num circuito internacional,
além das demais que já foram aqui mencionadas, é, também, uma
importante contribuição da obra de Mia Couto para a história da
literatura moçambicana.
Entendemos ser Mia Couto, em Moçambique, o inaugurador de
uma liberdade de criação literária que prima pela destreza do trato com
as palavras; pela postura singela com que abraça as perplexidades do
seu tempo; pela multiculturalidade que sobrepuja o exotismo com que
o continente africano ainda é, muitas vezes, concebido; e pelo inusitado
das situações, descritas sempre, parodiando Machado, com a pena da
dedicação e com a tinta da ironia.
Resta saber, e para isso empreenderemos outro passo neste nosso
percurso, como tem sido a recepção dessa literatura; esse é o tema do
nosso próximo capítulo.