Reflexões sobre a historiografia literária moçambicana

 Diante das colaborações dos diferentes pesquisadores para a construção de uma história da literatura moçambicana, perguntamo-nos 

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acerca da natureza da historiografia literária: que conceitos ela deve

desenvolver? Wellek & Warren (1971, p.319) colocam-se essa pergunta

em termos ainda mais essenciais:

Será possível escrever história literária, isto é, uma coisa que seja

simultaneamente literária e uma história? A maior parte das histórias da

literatura [...] são ou histórias sociais, ou histórias do pensamento enformado em literatura, ou impressões e juízos acerca de obras específicas

dispostas em ordem mais ou menos cronológica.

Marisa Lajolo (1994, p.22) lembra que a historiografia literária, tal

como é praticada hoje, procura organizar autores, obras e estilos de forma

cronológica, formando conjuntos cujos recortes são baseados ora em critérios literários – como no caso da poesia simbolista, por exemplo –, ora

em critérios extraliterários, que se definem como um recorte da vida social

– é o caso, no Brasil, dos romances do ciclo da cana-de-açúcar. Qualquer

que seja o critério de agrupamento adotado, o historiador da literatura

acaba por eleger algumas obras e autores em detrimento de outros, colaborando para a constituição de um cânone que se repete, via de regra,

nos diferentes compêndios de historiografia literária de uma dada nação.

“É assim que a história da literatura acaba por patrocinar firme gerenciamento da literatura que, ‘historicizando’, ela legitima” (ibidem, p.25).

A historiografia literária, contudo, ao mesmo tempo que “historiciza” determinados produtos, é também, ela mesma, “historicizável”.

Uma história das histórias da literatura, como a que aqui exercitamos

em relação à literatura moçambicana, deve apontar o modo pelo qual

esse conhecimento é construído, sempre de acordo com o momento

histórico em que é realizado.

No caso de Moçambique, pensamos que a história da literatura se

foi construindo ao mesmo tempo que se dava a consolidação da nação.

É natural, portanto, que esteja fortemente marcada pela realidade social

que constitui seu entorno. Como no caso do Brasil, embora com larga

distância temporal, a fundação da nação moçambicana é contemporânea da fundação de sua história literária. É por isso que a literatura, na

maior parte das contribuições que analisamos, foi tomada como um 

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documento que ilustra e acompanha a história de Moçambique. Afora

a obra de Pires Laranjeira, em que a história social aparece permeada

com critérios estéticos; nas demais, as tentativas de periodização estão

fortemente marcadas pela história nacional, como vemos no Quadro

1 que se segue.

As marcas recorrentes para delimitação dos períodos da literatura

moçambicana, nos autores estudados, são fatos de ordem histórica:

a colonização, o assimilacionismo, a negritude, a luta de libertação

nacional, a independência; isso fica explícito nas tentativas de nomear

os diferentes períodos. Termos como literatura colonial, literatura de

combate/contestação/protesto, literatura em liberdade ou “A pátria

parida”, tal como os usam Manuel Ferreira, Frantz Fanon, Mário Pinto

de Andrade, Orlando Mendes e Manoel de Souza e Silva, pertencem

ao campo dos estudos sociais; embora esses influam diretamente nas

estruturas literárias, pensamos que seria mais adequado nomear os

períodos a partir de elementos internos da literatura.

Fátima Mendonça tem uma opção diferenciada: ela recorre diretamente à datação histórica para indicar os diferentes períodos da

literatura moçambicana. Embora esta seja uma atitude muito usual

nos estudos da história da literatura, Vítor Manuel de Aguiar e Silva

(1976, p.349) pondera o seguinte:

O recurso ao conceito puramente numérico de século [ou de outras

datas históricas] revela-se desprovido de qualquer valor crítico. O século

é uma unidade estritamente cronológica, cujo início e cujo término não

determinam forçosamente a eclosão ou a morte de movimentos artísticos,

de estruturas literárias, de ideias estéticas, etc.

Trata-se, segundo o autor, de um critério inconsistente, tanto

quanto o recurso aos acontecimentos políticos ou sociais, que indicam, antes de tudo, uma concepção da literatura como objeto sem

autonomia:

Tão inconsistente como a divisão em séculos da história literária,

revela-se a fixação dos períodos literários segundo acontecimentos políticos 

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ou sociais: “literatura do reinado de Luís XV”, “literatura isabelina” ou “literatura victoriana” etc. Este enfeudamento da história literária à história

geral, política ou social [...] radica numa concepção viciada do fenómeno

literário: este é entendido como uma espécie de epifenómeno dos factores

políticos e sociais, e portanto como um elemento carecente de autonomia

e desenvolvimento próprio. Ora os reinados e acontecimentos políticos,

tal como os séculos, não determinam automaticamente o declínio ou o

florescimento de valores literários, de modo a poderem ser utilizados como

marcos divisores em periodologia literária. Isto não significa, porém, que

não deva reconhecer-se a profunda acção dialética exercida pelos factores

sócio-políticos sobre o fenómeno literário, ou que não deva reconhecer-se,

de modo mais particular, a relevante influência das mutações sociais na

transformação das estruturas literárias. (ibidem, p.350)

Diferentemente dos demais pesquisadores, Pires Laranjeira (1995a),

embora também lance mão de critérios históricos e sociais, é o que mais

valoriza os fatos imanentemente literários para a demarcação de fases

na literatura moçambicana. Suas reflexões iniciais partem das primeiras referências ao país, período ao qual ele denomina propriamente de

Incipiência, ou seja, uma época em que as raras manifestações literárias

estavam circunscritas à imprensa. O período seguinte, que Laranjeira

identifica na esteira da proposta de Fátima Mendonça, é denominado

por ele de Prelúdio: o termo, advindo da música, indica, etimologicamente, um “grupo de notas que se canta ou toca para testar a voz ou o

instrumento”, ou, ainda, uma “introdução instrumental ou orquestral

a uma obra musical” (Houaiss, 2002). Trata-se, assim, por analogia, de

um momento em que a literatura moçambicana ainda não ganhara uma

voz própria, embora se fizesse presente nos escritos de Campos Oliveira.

Laranjeira observa, com pertinência, que essas duas fases são uma espécie de preparação para a literatura que se constituiria posteriormente

em Moçambique. Na sequência, Pires Laranjeira continua seguindo a

proposta de Fátima Mendonça e a ultrapassa, acrescentando, aos períodos que a estudiosa delimita por datas, nomes próprios da área literária:

Formação e Desenvolvimento, procurando identificar os momentos em

que a produção literária moçambicana ganha autonomia, constituindose, com a sua Consolidação, num sistema literário.

Nos resultados publicados em Pires Laranjeira (2001), o autor

também procura se ater a critérios intrínsecos à literatura para denominar as seis fases que identifica nas literaturas africanas de língua

portuguesa, aproximando-as, reservadas suas particularidades, da

história da literatura portuguesa na medida em que utiliza termos

que fazem referência a romantismo, realismo, regionalismo; ao

que os demais autores preferem chamar de literatura de combate,

Laranjeira nomeia como literatura de resistência, termo que guarda

mais uma conotação de defesa dos próprios valores do que de ataque

aos valores do outro. Ao que anteriormente Pires Laranjeira (1995a)

havia chamado Consolidação, ele prefere agora, em Laranjeira (2001),

chamar Contemporaneidade, termo que inclui tanto o período de consolidação do sistema literário, como seu desenvolvimento posterior

até a atualidade.

No que diz respeito à consolidação de um sistema literário, vale

lembrar que, em seu estudo Formação da literatura brasileira, de 1959,

Antonio Candido distingue as manifestações literárias da literatura

propriamente dita. Embora essa distinção lhe tenha rendido uma série

de críticas, na medida em que o autor exclui da formação da literatura

brasileira o período barroco,33 ela continua tendo a sua validade como

método para se pensar a história da literatura. Candido (1971, p.23)

define literatura como

um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem

reconhecer as notas dominantes duma fase. Êstes denominadores são, além

das características internas, (língua, temas, imagens), certos elementos

de natureza social e psíquica, embora literàriamente organizados, que

se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da

civilização. Entre eles se distinguem: a existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto

de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra

33 O pivô dessa polêmica foi o poeta Haroldo de Campos, que, em 1989, publicou o

livro O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira, no qual defende

a relevância do poeta Gregório de Mattos, cuja literatura fora considerada por

Candido como manifestação literária e não literatura propriamente dita.

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não vive; um mecanismo transmissor (de modo geral, uma linguagem,

traduzida em estilos), que liga uns a outros. (grifo do autor)

O estudo de Candido não é somente crítica ou historiografia literária, mas também uma sociologia da literatura, na medida em que o

autor considera elementos de “natureza social e psíquica” como determinantes para a existência da literatura: não basta que haja autores, é

preciso que eles estejam conscientes de seu papel social como escritores;

o conjunto das obras deve formar, também, uma tradição, isto é, as

obras devem remeter umas às outras, para que haja uma continuidade

no diálogo que estabelecem entre si.

É fato que, até o presente momento, não temos notícia de um estudo mais alentado sobre a história da literatura moçambicana. Talvez

isso se dê pelo fato de ser ela um objeto novo, se comparada às outras

literaturas nacionais, e por não terem os estudiosos dessa literatura o

recuo necessário, no tempo, para avaliar suas produções, no sentido

de vislumbrar entre elas o estabelecimento de uma tradição ou de uma

linha de continuidade. As contribuições dos autores que analisamos,

contudo, são relevantes como tentativas de mapear, na história, o

surgimento dessa literatura e seus primeiros desenvolvimentos.

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