Considerações sobre a historiografia literária
Segundo Vítor Manuel de Aguiar e Silva (1990, p.27), a historiografia
literária teve início no ano de 1815, com a publicação de História da
literatura antiga e moderna, de Friedrich Schlegel. A literatura, então,
26 ana cláudia da silva
devia ser estudada no seu desenvolvimento orgânico, nas suas várias
épocas, procurando-se reconstituir a complexa interação existente entre
a herança e a criatividade individual e relacionar os autores e as obras
com os grandes movimentos espirituais e culturais da sua época, com os
acontecimentos políticos do seu tempo, com a sociedade de que faziam
parte, etc. (ibidem)
Ainda no século XIX, a historiografia literária avançou mantendo
laços estreitos com a filologia8
e com a história, principalmente com a
disseminação dos ideais positivistas, que apresentavam os fatos como
garantia de objetividade para o estudo histórico da literatura.
No início do século XX, o conceito de história construído durante
o romantismo entrou em crise – e, com ele, também a historiografia
literária. Novos movimentos, tais como o formalismo russo, o new
criticism norte-americano e a estilística “subestimaram a diacronia, isto
é, a perspectiva histórico-evolutiva na análise dos textos literários, [...]
valorizando a sincronia [...] [e] o estudo imanente dos textos, ou seja, o
estudo dos textos na sua estrutura formal e semântica [...]” (Silva, 1990,
p.28, grifos do autor). O estudo dos textos passou a prescindir, então,
da biografia, da intenção do autor e da investigação de suas fontes e
influências, transcendendo as determinações históricas. “Com efeito,
o historiador literário trabalha com textos que, produzidos num dado
tempo histórico e marcados por esse mesmo tempo, transcendem,
enquanto monumentos artísticos, os limites e as características desse
tempo histórico”. (ibidem, grifo do autor)
Mais tarde, o aparecimento dos estudos semióticos, relevando a
importância dos sistemas e códigos na produção/recepção do texto
literário, demarcaria um novo campo de estudos imprescindível para
a historiografia literária:
8 Wellek & Warren (1971, p.47-8) lembram que “filologia” é uma expressão que
permite equívocos: “Historicamente, tem sido utilizada com inclusão não só
de todos os estudos literários e linguísticos, mas também do estudo de todos os
produtos do espírito humano. [...] Hoje, [...] entende-se frequentemente que
a filologia significa a linguística, sobretudo a gramática histórica e o estudo de
passadas formas de linguagem”.
o rio e a casa 27
Como se constituem esses sistemas e códigos, que são entidades históricas? Como se modificam estas entidades no fluir da história? Qual a origem
e qual a evolução dos processos literários que, numa determinada época,
configuram a literariedade? Quais as articulações da semiose literária com
os sistemas de valores ideológicos e com o sistema social? (ibidem)
Essas são as perguntas que devem ser respondidas pela historiografia literária. Silva (1990, p.28-9) lembra, porém, que os novos
rumos da história literária não podem deixar de considerar, também, a
literatura como instituição, ou seja, como um fenômeno composto de
agentes (escritores, editores, divulgadores) e mecanismos de produção
e recepção (leitores, professores etc.).
Com relação ao tipo de trabalho teórico que se pode desenvolver
sobre a história da literatura, José Luiz Jobim (1998, p.9-11), membro do Grupo de Trabalho em História da Literatura da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística
(Anpoll), elenca uma série de possibilidades que se abrem ao pesquisador dessa área:
Pode-se, por exemplo, tratar do inventário de mudanças nas descrições do que é literatura; averiguar por que e como essas mudanças se
deram; indagar sobre a autoconsciência dos produtores destas descrições
no passado; ou sobre a nossa própria autoconsciência, ao examinarmos a
deles. Pode-se examinar como se configuram visões de ou sobre a literatura
em estruturas sociais, tanto de “dentro” de um período, na perspectiva
produzida por este período sobre si próprio, quanto de “fora”, na visão
que outro período lança sobre ele.
Pode-se também presumir que tanto os pressupostos, métodos e limites do que se concebe como História mudaram e mudam, como também
mudou e muda o que se entende por literatura. Para compreender o roteiro
das mudanças, podem-se recuperar instituições, maneiras de pensar,
modos de escrever que se procurou apagar ou que de alguma maneira
sobreviveram. É possível também trabalhar com as descrições de autores,
obras, períodos; com sua aprovação ou reprovação por vários e sucessivos
públicos; com os alegados fundamentos desta aprovação ou reprovação;
com as interpolações, inferências, escolhas, arranjos, ordenações, seleções –
28 ana cláudia da silva
e princípios usados para controlar seleções –, juízos – e critérios usados para
a emissão desses juízos –; com a escolha de temas e interesses; com a relação
entre o conhecimento histórico e os problemas e concepções dominantes
da cultura do período em que foi escrito; com os processos ou argumentos
utilizados para justificar uma interpretação histórica; com a temporalidade
dos discursos de e sobre a literatura, inseridos em quadros de referência
de diferentes visões de mundo, nas quais se expressa a complexidade das
formas de representação da realidade; com a escrita da história literária
como evento também histórico, cujos enunciados pagam necessariamente
tributo ao momento de enunciação; com o sentido atribuído às formas
com que se produz o discurso histórico de e sobre a literatura. A análise
desse discurso poderia inclusive enriquecer nossa compreensão sobre a
configuração e o papel social dele, relacionando-o: com os programas de
vida que comunidades humanas inventaram no passado e com as representações que foram criadas para preencher seu imaginário; ou com as
justificativas necessárias para estas invenções, a ponto de, às vezes, pela
imposição de crenças coletivas operadas socialmente, transformá-las de
possibilidades em necessidades.
Também os pressupostos que constituem a fundamentação epistemológica das representações fazem parte da realidade da comunidade que os
adota. Se definirmos a realidade dentro ou a partir destes pressupostos,
sempre que mudarmos nossas representações e os objetos constituídos
por elas, mudaremos também a realidade. [...]
Se nos afastarmos de uma concepção de História da Literatura como o
inventário de uma continuidade cumulativa de textos, podemos também
propor o estudo histórico dos conceitos e da terminologia empregados
nos discursos de e sobre a literatura. Podemos investigar: as comunidades
acadêmicas e/ou literárias organizadas em torno de conceitos compartilhados; a organização de campos a partir de conceitos comuns – pesquisando sua duração, seu lugar, sua relação com outros campos; a mudança
de conceitos, terminologias e quadros de referência disciplinares, como
indicativo possível de mudanças nos critérios de objetividade (e, portanto,
nos objetos); o âmbito de sentido dos conceitos e terminologias em seu
contexto de produção, e a diferença entre a recepção destes, naquele contexto e em outros posteriores; a relação destas mudanças com o ambiente
sociocultural em que se inserem, a partir do qual podem ser vistas como
sintoma, efeito, causa, vestígio ou prenúncio de algo; os termos e conceitos
o rio e a casa 29
cuja reiterada presença e aparente permanência encobrem diferenças de
“conteúdo” no seu emprego em diversos períodos; a genealogia, circulação,
predominância ou posição secundária de quadros conceituais e terminológicos; o conceito como uma forma de aglutinar e relacionar determinadas
referências vigentes em um momento histórico.
Trata-se, como vemos, de um quase infinito leque de possibilidades,
mesmo se tivermos como referência corpus literários já estabelecidos e
canonizados, como os das literaturas brasileira e portuguesa. No que
diz respeito às literaturas africanas de língua portuguesa, esse campo
de estudos é ainda mais vasto, visto que se trata de sistemas literários
muito mais recentemente constituídos. Parece-nos que os esforços,
até o presente momento, concentram-se ainda em “inventariar uma
continuidade cumulativa de textos”, trabalho esse que se aproxima
daquele que Vítor Manuel de Aguiar e Silva propusera como objeto
de estudo da historiografia literária. Assim, mesmo com essa nossa
contribuição e com as demais que elencamos no Capítulo 2, ainda resta
um longo percurso a ser trilhado para que possamos pensar a literatura
de Moçambique de modo mais abrangente.
Também René Wellek & Austin Warren (1971) problematizaram o
estudo da historiografia literária. Para eles, embora façamos a distinção
entre teoria literária, criticismo literário e história literária, essas áreas
se imbricam mutuamente. Na história literária, lembram os autores,
não há fatos neutros: “Os juízos de valor estão implícitos na própria
escolha dos materiais: na simples e preliminar distinção entre livros
e literatura, no maior ou menor espaço consagrado a este ou aquele
autor” (ibidem, p.49). Porém, a ideia de que a história literária prescinde da crítica baseia-se no fato de que aquela tem padrões e critérios
particulares: “Sustentam esses reconstrutores literários que devemos
penetrar no espírito e nas atitudes dos períodos passados e aceitar os
seus padrões, deliberadamente excluindo a intrusão das nossas próprias
opiniões prévias” (ibidem, p.50). Esse historicismo, que esteve em
voga desde o século XIX, desconsidera a estética da recepção, segundo
a qual cada época tem seu modo próprio de compreender e avaliar as
produções literárias:
30 ana cláudia da silva
esse esforço de reconstituição histórica conduziu a centrar o interesse na
intenção do autor, a qual – supõe-se – pode ser estudada na história do
criticismo e do gosto literário. [...] O autor serviu um objectivo seu contemporâneo; e não há necessidade, ou sequer possibilidade, de criticar mais
extensamente a sua obra. Esse método leva, assim, ao reconhecimento de
um único padrão crítico: o do êxito contemporâneo. (ibidem, p.51-2)
A obra, assim, é lida dentro de seu contexto de produção, a partir
do qual se pode inferir uma certa intenção autoral. Maria da Glória
Bordini (1999?, p.4), por sua vez, pondera o seguinte:
É discutível que o que acontece no “teatro mental” do escritor não
permita ilações atinentes a sua história de vida, se a tese for a de que as mentalidades se conformam em meio a experiências vividas, eventos de ordem
a mais imprevisível, relações concretas entre os seres humanos, objetos
simbólicos cuja construção requer meios tangíveis de produção e circulação.
Ao fazer essa afirmação, a autora parte de uma reflexão sobre o uso
dos acervos nos estudos de História da Literatura Brasileira. Nesses, é
possível encontrar outros materiais, além das obras literárias publicadas, que podem levar o pesquisador da literatura à inferência de modos
de vida e comportamento dos escritores que acabariam por encontrar
reflexos em suas obras. Mesmo tangendo apenas parcialmente os
objetivos que traçamos para esta etapa de nosso estudo, as afirmações
da pesquisadora levam-nos a considerar a quase total precariedade na
qual se desenvolvem os estudos de história das literaturas africanas de
língua portuguesa. Não há, no Brasil, acervos que reúnam sequer as
obras dos autores mais representativos dessas literaturas; essas estão
dispersas pelas bibliotecas de algumas universidades, ou constituem
acervos particulares dos estudiosos cujo acesso é vetado à maioria dos
pesquisadores. Assim, é forçoso reconhecer o relativismo (a redução
da história literária a um conjunto de fragmentos descontínuos) ou o
absolutismo (a restrição da obra literária ao seu caráter universalizante)
que permeiam os estudos que aqui se fazem.9
9 Francisco Noa, em nosso Exame de Qualificação, apontara algumas inconsistên-
o rio e a casa 31
Essas dificuldades já haviam sido previstas por Wellek & Warren
(1971, p.53). Os autores indicam que a melhor estratégia, na historiografia literária, para evitar o relativismo ou o absolutismo é o
“perspectivismo”:
Devemos ser capazes de referir uma obra de arte aos valores do seu
tempo e aos valores de todos os períodos subsequentes. Uma obra de arte
é “eterna” (isto é, preserva certa identidade) e “histórica” (quer dizer,
passa por um processo de desenvolvimento que logramos descortinar).
[...] O “perspectivismo” quer dizer que nós reconhecemos haver uma
poesia, uma literatura, comparável em todas as épocas, que se desenvolve
e evolui, cheia de possibilidades.
Luiz Gonzaga Marchezan,10 retomando Wellek & Warren, lembra:
A história literária passa por um longo processo de depuração. Visa
apartar-se dos métodos da história geral, dos relativismos e absolutismos
e encaminhar-se para um perspectivismo promissor. Isto porque tem
encontro marcado com um método histórico que possa sistematizar as
formas literárias, artísticas, dos textos literários. [...] o método histórico,
para uma história das formas literárias, deve absorver noções de teoria, a
fim de fazer avaliações (valorações) com bases teóricas, práticas, críticas.
No caso específico da literatura moçambicana, como veremos, as
contribuições para a sua historiografia provêm de pessoas que estão
ou estiveram muito próximas, temporal e espacialmente, da sua
produção: o português Manuel Ferreira viveu vários anos em Cabo
Verde, Angola e Guiné, como membro das Forças Armadas;11 Fátima
cias, oriundas da limitação das fontes para o estudo da literatura moçambicana
no Brasil (2009 [informação verbal]), as quais procuramos corrigir por ocasião da
escrita da tese. Contudo, há que considerar que nem todos os pesquisadores brasileiros da literatura moçambicana têm um acesso privilegiado como o que tivemos
a informações que circulam em Moçambique e que, de certo modo, permitem
retificar alguns dados que encontramos nas publicações que nos chegam.
10 Observações feitas durante a orientação da tese, em março de 2010.
11 As informações biográficas sobre Manuel Ferreira e Pires Laranjeira foram colhidas
32 ana cláudia da silva
Mendonça é portuguesa, radicada há muitos anos em Moçambique
e atua como docente da Universidade Eduardo Mondlane (UEM); o
brasileiro Manoel de Souza e Silva foi professor da escola secundária
em Moçambique, entre 1978 e 1980, tendo atuado também como professor visitante da UEM de 2002 a 2004; e José Luís Pires Laranjeira,
português, atualmente docente da Universidade de Coimbra, viveu
alguns anos em Angola, onde atuou também nas Forças Armadas.
Essa proximidade permite-lhes avaliar as obras em um contexto muito
próximo ao de sua criação.
Vale lembrar, também, que esses autores falam a partir de um
determinado local de cultura, carregado de concepções do mundo que
condicionam a leitura literária. José Luís Jobim (2005, p.43) lembra,
a respeito, que
o lugar é sempre fonte de pré-concepções que, de alguma maneira, contribuem para a elaboração do nosso dizer, pois nele se situa o sistema de
referências desse dizer – incluindo determinado universo de temas, interesses, termos etc. –, sistema que sempre já estabelece um limite dentro
do qual nosso campo de enunciação se circunscreve.
Assim, o pensamento sobre a literatura moçambicana estará condicionado ao lugar de onde fala aquele que escreve sua história. Além
disso, lembra Jobim, a historiografia literária se configura a partir dos
diferentes modos de conceber a literatura, os quais variam no tempo,
historicamente. Nos idos dos anos 1970 e seguintes, por exemplo, ganhou força a ideia de que o texto literário se basta por si só: o estudo das
maneiras de pensar, das instituições, dos cânones e das práticas de leitura,
bem como de outros referenciais externos à obra literária, foram “dispensados”, colocados em segundo plano. Mais tarde, na década de 1990,
esses tópicos voltaram a integrar os estudos literários (ibidem, p.47-8).
no Dicionário de autores de literaturas africanas de língua portuguesa (Gomes &
Cavacas, 1997, p.238); sobre Manoel de Souza e Silva, atualmente docente da Universidade Federal de Goiás, em seu currículo Lattes; e sobre Fátima Mendonça, no
site da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane
(disponível em: http://www.flcs.uem.mz. Acesso em: 20 nov. 2008).
o rio e a casa 33
Escrever uma história literária, portanto, é uma tarefa ampla, ainda
mais quando se trata de sistemas literários emergentes, porque o ponto
de partida de seus pesquisadores é a constituição dos sistemas literários de outras nações. Segundo Jobim, para empreender um projeto
inovador como esse e marcar sua diferença, “é sempre necessário um
referencial em relação ao qual se constrói essa diferença” (ibidem,
p.46). No caso da literatura moçambicana, podemos pensar que as
recentes contribuições para sua historiografia têm por base os processos de formação das literaturas brasileira e portuguesa, bem como
aqueles das outras nações de língua portuguesa, nomeadamente de
Angola, cujo repertório literário destaca-se como um dos mais amplos
no âmbito dessas literaturas. Vejamos, pois, como os historiadores da
literatura moçambicana enfrentaram essas questões.
Antes, porém, vale lembrar que a história da literatura ocorre
dentro de um processo e que o estabelecimento de fases ou períodos de
desenvolvimento dentro um sistema literário, embora tenha um caráter
essencialmente didático, está subordinado sempre ao ponto de vista de
um determinado crítico. Para conhecer mais completamente o desenvolvimento histórico da literatura nacional moçambicana, preferimos
observar as propostas dos diversos autores, de modo a conseguirmos,
assim, um panorama mais abrangente dos períodos formativos dessa literatura. De acordo com Francisco Noa, (2009 [informação pessoal]).12
talvez seja precipitado tentar definir “períodos” dentro dessa literatura,
cuja consolidação é ainda muito recente. Noa prefere falar em fases, termo que considera mais adequado para que percebamos as modificações
que se foram perpetrando na formação da literatura moçambicana. De
todo modo, está ainda por fazer um trabalho mais abrangente, mais
completo, considerando, principalmente, que a história da literatura
deve abranger uma história das formas literárias, conforme lembrava
Marchezan (2010, p.2 [informação pessoal]).13 O que se têm, ainda,
são propostas e contribuições valiosas para que possamos pensar a
literatura moçambicana em seu conjunto.