Formação ética e deontológica de profissionais de saúde – suas implicações no cuidar do sofrimento
A formação ética e deontológica de enfermeiros e médicos baseia-se usualmente em dois tipos de instrumentos: os princípios bioéticos e os códigos deontológicos de cada uma destas áreas. Partimos da identificação dos princípios bioéticos actualmente reconhecidos pelos Documentos Internacionais sobre Bioética e relacionamo-los com as concepções éticas das quais emergem: ética aristotélica, ética kantiana, ética utilitarista, ética pragmatista.
Num segundo momento, apresentaremos os modelos mais
usuais de integração destas temáticas na formação de médicos:
1- A ética e deontologia são
ensinadas como matérias residuais nos cursos de Medicina;
2- A formação nestas matérias
insere-se numa área denominada “Humanidades‟, a qual é independente das áreas
técnico-científicas;
3- A formação no âmbito da ética
e da deontologia pertence às “Humanidades‟.
De seguida, apresentaremos os resultados obtidos numa
investigação sobre o ensino da ética e da deontologia nas licenciaturas em
Enfermagem, em Portugal.
Por fim, partindo da análise documental e dos dados
apresentados anteriormente, questionaremos se a formação ética e deontológica
de médicos e enfermeiros, nomeadamente em Portugal, promove uma preparação
adequada para o cuidado do sofrimento humano. Os estudos que, no século XX,
tomaram como objecto as profissões têm vindo a defini-las, quanto ao que as
distingue de outras ocupações, pelo seguinte conjunto de características: um
corpo de conhecimentos especializados; a autonomia no exercício profissional;
um código de ética; etc. Este conjunto de características permitiu, há séculos,
reconhecer a profissão de médico. Já quanto à profissão de enfermeiro, esse
reconhecimento foi recente.
Modelos
de ensino da ética e deontologia profissional na formação dos médicos
Os modelos de formação dos médicos, no que respeita à
Ética e à Deontologia, focalizam-se sobretudo na Bioética. Assim organiza-se da
matéria nos cursos de graduação em Medicina:
1. Nas universidades mais
antigas o ensino da ética e da deontologia é como uma unidade curricular
autónoma.
2. Em algumas universidades
recentes, a Ética e Deontologia deixou de ser uma unidade curricular ou área
formativa autónoma. Procura-se, assim, fazer a ponte entre as diversas áreas de
especialidade e a reflexão ética.
3. Um terceiro modelo pode ser
encontrado também em universidades mais recentes, onde as metodologias
oscilam entre as de tipo mais expositivo e as de ética aplicada ou de dilemas
deontológicos, em contextos específicos de formação nas áreas tradicionais.
4. Num último modelo, detectamos
todo o curriculum formativo dirigido para a formação humanista de
médicos, inserindo-se neste quadro o ensino das áreas tradicionais.
Modelos
de ensino da ética e deontologia profissional na formação dos enfermeiros
Depois
de analisar-se o conteúdo dos curricula e programas de 22 Escolas de
Enfermagem, concluiu-se que (5) cinco das 22 instituições estudadas seguem
todas as recomendações do referido documento:
- Quanto à Ética: os conteúdos programáticos mais relevantes são:
“princípios e fundamentos da ética, virtude e valores, princípios e fundamentos da ética em Enfermagem, teorias éticas,
processo de tomada de decisões e dilemas éticos”.
- Quanto à Deontologia: é “o percurso histórico da
Deontologia, a regulação e auto-regulação profissional, direitos, deveres
e incompatibilidades, relevando-se a possibilidade de diversas abordagens
dos deveres reflectidos no Código”
- Quanto à Bioética: sugere-se a consulta, a
análise e o debate dos artigos publicados pelo Conselho Jurisdicional na
revista da Ordem dos Enfermeiros, na secção de Ética em Enfermagem, assim
como os pareceres do CNECV.
Princípios
bioéticos e códigos deontológicos
A associação entre bioética e deontologia justifica-se
pelo carácter derivado da deontologia, entendida como constructo jurídico que
retira a sua força da agremiação que o adopta, mas que busca a sua
fundamentação no conhecimento científico actualizado e na reflexão sobre
princípios éticos fundamentais. Beauchamps e Childress formularam, nos
primórdios da bioética, os quatro princípios ainda hoje considerados
fundamentais nesse quadro: beneficência, não maleficência, justiça e autonomia.
Pellegrino considera que tais princípios se situam, do ponto de vista da
finalidade, na preocupação pela cura.
A deontologia é, nesse enquadramento, “o conjunto de
regras de natureza ética que, com carácter de permanência e a necessária
adequação histórica na sua formulação, o médico deve observar e em que se deve
inspirar no exercício da sua actividade profissional”. Ainda que sejam
formulados princípios, estes não são ponto de partida para um raciocínio
lógico; antes tentando enunciar as condições para o cuidado da pessoa
vulnerável, una e única, afastando-se da perspectiva da cura como única
finalidade, e encarando-a como uma das formas de cuidar.
“Ética
da justiça” versus “ética do cuidado”
As expressões “ética da justiça” e “ética do cuidado”,
foram criadas para designar modelos de desenvolvimento moral e usam, por
conseguinte, a palavra ética de modo impróprio.
A primeira tem origem na investigação de Kohlberg, a
partir das suas respostas, Kohlberg estabelece uma teoria do desenvolvimento
moral em seis estádios, cada um dos quais define uma forma de tomar decisões e de
reflectir sobre temas morais. Os referidos estádios agrupam-se dois a dois e
seguem a seguinte ordem: pré-convencional, convencional e pós-convencional. Partindo
de trabalhos anteriores sobre socialização precoce e identificação de género,
Gilligan concluiu-se que a diferença entre as formas definidas como masculina e
feminina de avaliar moralmente não resultam, nem de uma inferioridade das
mulheres, nem de uma característica biológica. A diferença resulta – conclui
Gilligan na esteira de Chodorow – do facto habitual de as mulheres serem as
principais cuidadoras da infância, originando nas meninas uma identificação com
as mães, ao passo que a identifcação sexual dos rapazes os conduziria à negação
daquelas dimensões.
Da prática à fundamentação: consequencialismo,
deontologismo, ética das virtudes
Consideramos três grandes orientações quanto à
fundamentação da ética (consequencialismo, deontologismo, ética das virtudes),
as quais se distinguem pelo ponto de vista que adoptam na apreciação do que
constitui a moralidade de um qualquer acto.
Em contrapartida, o “deontologismo” deduz a eventual
bondade de um acto da sua natureza intrínseca (um acto mau é sempre mau,
independentemente das vantagens que possa ter para algum dos envolvidos) e a
“ética das virtudes” centra-se no carácter do sujeito moral.
A “ética das virtudes‟ conota-se sobretudo com a ética
aristotélica, de tipo teleológico, na qual o Bem era o fim para o qual as
acções humanas se dirigiam. No século XX, porém, a ética das virtudes foi por
diversos autores na tentativa de construir modelos sustentados em éticas que
desvinculassem a bioética do poder do consequencialismo, da hipervalorização da
autonomia individual face aos outros princípios.
Cuidar
do sofrimento e formação académica
Cuidar de alguém pressupõe que esse
outro de nós necessita; por isso, a função mais fundamental de qualquer
cuidador de saúde, formal ou não formal, consiste em minorar o sofrimento que
torna o outro tão frágil e vulnerável. Dada a estrutura curricular da maior
parte dos cursos de Medicina e de Enfermagem, o locus possível de
reflexão e aprendizagem sobre o sofrimento seriam as unidades curriculares de
Ética, Bioética, Deontologia. Em muitas circunstâncias, entre os profissionais
existem incongruências no cumprimento de princípios bioéticos e deontológicos,
o que pode dever-se ao facto de tais princípios se fundamentarem em éticas (e
quiçá sistemas ontometafísicos) de orientação totalmente diferente, e até
contraditórios entre si.
Vocabulário
- Maleficência
- Utilitarista
- Antropologia
- Deontologia
- Intrinsecamente
- Bioética
- Descontextualizados
- Processo de Bolonha
- Ética
- Virtude
- Valores
- Princípios
- Agremiação
- Preambulo
- Axiológica
- Ontológica
- Benevolência
- Volatilidade
- Axiomas
- Solicitude
- Enraizamento
- Axiológico
- Subjaz
- Quiçá
- Sistemas ontometafísicos
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Aristóteles (2009). Ética a Nicómaco. São Paulo. Atlas
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·
Brad Hooker, Ideal Code, Real World Oxford University
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· Conselho Jurisdicional - Recomendações
relativas ao ensino da Ética e Deontologia no curso de Enfermagem.
Lisboa. Ordem dos Enfermeiros, 2006. [Consultado em 6-9-2007]. Disponível em
http://www.ordemenfermeiros.pt/images/contents/uploaded/File/sededestaques/CJ_RECOMEND%20ENSINO%20ET%20DEONTOL_ORIGINAL.pdf.
· Estatuto da Ordem dos
Enfermeiros, publicado
em anexo ao Decreto-Lei nº 104/98 de 21 de Abril, que cria a Ordem dos
Enfermeiros, Diário da República I Série A, nº 93, de 21/4/98
· Código Deontológico dos
Médicos Portugueses
https://www.ordemdosmedicos.pt/?lop=conteudo&op=9c838d2e45b2ad1094d42f4ef36764f6&id=cc42acc
8ce334185e0193753adb6cb77
[Consultado em 2010-03-17].
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Medicina é uma Ciência? Uma Interrogação Filosófica. Pessoas e Sintomas,
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Humanidades na Formação Médica: Realidade ou Farsa? Reflexão e Ação,
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