A legítima dor da Dona Sebastião
FICHA TÉCNICA
LUCÍLIO
MANJATE
Nasceu em
Maputo, capital de Moçambique, em 13 de janeiro de 1981. É formado em
Linguística e Literatura pela Universidade Eduardo Mondlane e é professor de
Literatura na Faculdade de Letras e Ciências Sociais da mesma Universidade. É
membro da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO) e da Sociedade
Moçambicana de Autores (SOMAS). Participa também de eventos internacionais como
jornadas literárias e outros encontros culturais. Escreve matérias para jornais
e revistas e livros, alguns premiados, como Os silêncios do narrador.
OUTRAS
PUBLICAÇÕES:
·
O jovem
caçador e a velha dentuça,
Vozes da África, 2016.
·
A triste
história de Barcolino, o homem que não sabia morrer, 2017.
Ficção
·
Manifesto. Maputo:
TDM, 2006
·
Os silêncios do narrador. Maputo:
AEMO, 2010.
·
O contador de palavras. Maputo:
Alcance, 2012.
·
A legítima dor da Dona Sebastião. Maputo:
Alcance, 2013.
·
Literatura Moçambicana – da ameaça do
esquecimento à urgência do resgate. Maputo: Alcance, 2015 (Coautor)
Coorganização
·
Esperança e certeza 2 – Contos. Maputo:
AEMO, 2008. (Coorganizador)
·
Era uma vez… Maputo:
AEMO, 2009. (Coorganizador)
·
Antologia Inédita – Outras vozes de
Moçambique. Maputo: Alcance, 2014. (Coorganizador)
PRÊMIOS:
·
Prémio Revelação – TDM –
Telecomunicações de Moçambique (2006) Manifesto;
·
Prémio 10 de Novembro (2010): Não me olhe com tanto ouvido boquiaberto (romance –
AEMO). Posteriormente, o livro recebeu o título de Os silêncios do narrador.
·
Prémio Literário Eduardo
Costley-White (2017): Rabhia.
Resumo da Obra A Legítima
Dor da Dona Sebastião
I
Não se trata de um substantivo qualquer. Não é
Lilinho, Vera ou Joana. É Sebastião, primeiro nome de um dos mais
importantes fotojornalistas do mundo, Sebastião Salgado Jr.; de um grande
mártir cristão, São Sebastião; e de um rei afamado, cuja história é incapaz de
o sepultar, Dom Sebastião. Para sermos francos, trouxemos estas três
entidades ao acaso, a fim de demonstramos queSebastião é um
substantivo masculino, significando ingénuo ou pateta, mas também sagrado ou
venerável. O nome provém do grego, Sebastiasnos, e, antes de ser
empregado na língua portuguesa, passou pelo latim, Sebastianus.
Em seu quarto livro, Lucílio Manjate traz-nos uma
personagem extremamente idónea, consequência de várias vivências e longos anos
de trabalho em prol da (re) construção de uma sociedade com a qual, afinal, nem
se identifica mais tarde. Mas nem é isto que logo de partida nos chama atenção
nesta obra, e, sim, o género literário em, à imagem da emblemática obra de
Ungulani ba ka Khosa, Ualalapi, ela se insere. Ou seja – esta é
nossa opinião –, em nenhum dos até então (re) conhecidos pela crítica
literária. Trata-se de uma obra que aparenta ser um conto longo,
não um romance – embora possuidora de enredos característicos de
romances policiais –, ou uma novela burlesca com um tom discursivo e hilariante
semelhante às personagens desinibidas encarnadas pelos actores da Companhia
Teatral Mutumbela Gogo. Aliás, o humor encontrado nas falas das personagens e
do narrador em alguns casos fazem com que a obra de Manjate apresente o que
Rosania da Silva designa (2012: 260) ao analisar As Visitas do Dr.
Valdez, de João Paulo Borges Coelho: “O jogo da representação ou a
teatralização narrativa”. A diferença é que, enquanto no romance As
Visitas do Dr. Valdez (2009) ou na novela Hinyambaan (2007) a
representação materializa-se quando as personagens Vicente, Caetana e Amélia,
na primeira obra, e Djika-Djika e o casal Odendaal, na segunda, teatralizam a
trama com um recurso permanente ao fingimento. Já em A Legítima Dor da
Dona Sebastião, de Lucílio Manjate, o jogo instaura-se ora como resultado
da embriaguez que envolve personagens, nas afamadas barracas do Museu,
ora como fruto de um diálogo astuto, orquestrado pelas mesmas e por outras
personagens em momentos melindrosos, de grande êxtase da narrativa:
“… E então? ”.
“Falo do
país. ”
“E ninguém
sabe isso?”
“Aqui, a
palavra não tem cor, não tem sabor, não cheira nem dói! ”
“Nunca te
esqueças.”
“Mas de que
vale essa retórica, se volta e meia a velha está aqui e não podemos falar?”,
reclama Rafael, Rafael Malíngua, de nome verdadeiro.
“Sei onde
pretendes chegar… conheço a tua estirpe: depois vais vender a ideia ou o
idiota…”
“Ou a
utopia…”
“… conforme
o caso e o lucro. ” conclui Amade, trocista.
“Do idiota?
”
“Do idiota o
quê? ”
“A utopia. ”
“Pode ser,
também há utopias idiotas. ”
A velha, a
velha! ”
Por fim, chama-nos atenção o facto de em Lucílio
Manjate a protagonista ostentar um nome masculino, Sebastião. Convictos de que
a escolha do nome da personagem nuclear da história não foi fortuita, a nossa
análise vai procurar, primeiro, explicar as razões da atribuição do nome em
causa a uma personagem feminina e, em seguida, revelar os eventuais sentidos
daí resultantes. Explicaremos também a relação recíproca entre o mistério e o
ódio, duas realidades diegéticas sem as quais a trama não existiria.
II
A Legítima Dor da Dona Sebastião é a história
de uma velha senhora, Sebastião Jonas Mussuei. Ainda jovem, esta personagem
dedicara-se à docência em Mandimba, no Centro de Formação de Majune (província
de Niassa) e na Escola Primária 3 de Fevereiro, em Maputo. Foi nesta província
do sul de Moçambique que, convicta da relevância da sua missão na formação do
“Homem Novo” no rescaldo da guerra colonial e principiar da guerra dos
dezasseis anos, educou e formou política e ideologicamente os seus alunos.
Nesse processo de ensino e aprendizagem Sebastião sempre baseara-se na nova
ordem de um regime em que o futuro, utopicamente, teimava em ser auspicioso.
Era uma senhora de porte forte e cuidada; a cútis,
normalmente coberta em capulanas, tinha a cor de um bronze velho e pronunciava
já a irremediável flacidez da idade. Os olhos pretos eram de uma estranha
amargura [mais adiante nos debruçaremos sobre essas amarguras, dores
legítimas], brilhavam segredos inconfessáveis até ao silêncio que a envolvia,
segredos agora mortos. (p. 9)
Após a sua aposentadoria, Sebastião passa a maior
parte da sua vida na rua José Mateus (Museu) onde instalara a sua barraca. As
barracas do Museu tornam-se um espaço excepcional da narrativa na medida em que
é nesse cenário – a partir da focalização interna activada por Dona Sebastião –
em que se revela o passado de seus quatro ex-alunos. A vendedeira
impõe-se assim como personagem e como unidade de significação construída progressivamente
pela narrativa. Ela é suporte das transformações semânticas e, enquanto
narrador, independentemente do seu estatuto, partilha o seu campo de
conhecimento de maneira a evitar episódios supérfluos, e a enriquecer o
mundo imaginário por ela criado (Reis e Lopes, 2000: 314-322). Esta situação propícia
“à” Sebastião uma certa autoridade na forma como ela manipula o presente dos
quatro personagens, nomeadamente, Malfácio, Amade, Malíngua e Manguana.
A atribuição do substantivo masculino à professora
aposentada, vendedeira de profissão nos tempos de crise, a escolha do número de
personagens centrais, com as quais ela tem um compromisso marcado na mesma mesa
de látex todas as sextas-feiras, e o espaço principal da acção têm aqui um
efeito simbólico. Estes elementos ecoam com a localização das barracas do
Museu, apresentadas no prólogo através de uma descrição desapaixonada do
narrador por não passarem de infra-estruturas desbotadas e situadas na Rua José
Mateus, a qual faz o cruzamento com a Rua dos Lusíadas a Norte e com a Avenida
Mártires da Machava a Sul. Embora se encontrem numa das zonas nobres da cidade
de Maputo, as barracas simbolizam o subúrbio, funcionando como um local de
hospitalidade às entidades de diferentes estatutos sociais, sobrevivendo ou
suicidando-se na urbe: escritores/poetas, pintores, jornalistas, políticos em
ascensão e gente jovem sem perspectivas nenhumas. Mais uma vez, à semelhança do
cenário de O Contador de Palavras, terceiro livro do autor
(constituído por treze contos), a escrita de Manjate revela uma tendência forte
ao urbanismo e aos eventos típicos desse espaço, confirmando assim a hipótese
de Salvato Trigo, seguundo a qual, a cidade é a meta dos que vêem nela a
possibilidade de melhoria do seu estatuto social e económico (Trigo, 1984: 55).
Numa passagem anterior àquela, Salvato Trigo afirma:
As literaturas africanas modernas, isto é, aquelas que
se exprimem na língua de colonização, têm a sua emergência indubitavelmente
ligada ao urbanismo, enquanto fenómeno semiótico que tem a ver com a
organização social do espaço e que introduz, por isso mesmo, uma nova filosofia
de vida tão diferente da do ruralismo característico da África pré-colonial
(Trigo, 1984: 53).
Pode haver uma dose de exagero neste pensamento acerca
da emergência do urbano nas literaturas africanas modernas, pois, mesmo
materializando-se na língua de colonização, muitas obras literárias das
modernas literaturas africanas, no geral, e da literatura moçambicana, em
particular, transportam para escrita toda uma série de tradições literárias
típicas da literatura oral, tendo como espaço privilegiado o campo ou a
mundividência de narradores e personagens rurais. Não pretendemos pôr em causa
os argumentos de Trigo, queremos sim problematizá-los e reivindicar o outro
lado da matriz sobre as quais as literaturas em causa também revelam uma
ligação acentuada. Seja como for, com as descrições dos espaços e das
personagens que neles co-habitam, fica evidente o interesse de Lucílio Manjate
pela cidade. Acima de tudo, as barracas do Museu funcionam como ponto de
encontro onde personagens podem expressar-se como quiserem. Porque, como diz
Dona Sebastião, “a expressão é um acto libertário”, numa situação em que, como
coloca Karl Liebknecht[4],
“O inimigo mais poderoso está no nosso país!”. Mas não é bem isso o que
acontece com os amigos que entre muitas coisas dirigem-se às barracas para
falarem de política ao seu bel-prazer, uma vez que, Dona Sebastião
interdita-lhes a liberdade de expressão. A atitude da vendedeira faz dela um
símbolo da autoridade :
Agora que
mochos são esses, Manguana? Aqui não quero ouvir falar de mochos (…) (p. 13)
E tu nunca
mais tragas as tuas fofocas para esta mesa. Isso termina lá, no teu jornal,
onde há espaços para confusões, ouviste? (p. 48).
Já na altura que fora indigitada como professora para
leccionar na escola pré-primária, Sebastião impunha na sala de aulas, no
recinto escolar ou onde quer que fosse as regras institucionais e as condutas
sociais, nem que para o efeito tivesse de recorrer à palmatória. A educação
assumia nessa época um papel ideológico e cabia a Sebastião Jonas Mussuei
incutir nos alunos uma formação política compatível ao tão almejado “Homem
Novo”. Agora, velha e aposentada, Sebastião cuida da barraca do Museu
vendendo álcool e petiscos de cabrito a quem pudesse pagar. Ora, dos seus
clientes, quatro deles, jamais pagariam a conta. Mas, curiosamente, ela não se
incomoda com isso. Pelo contrário, notando o interesse de os seus ex-alunos, já
amigos, a discutirem política, com a mesma pujança de outrora, intromete-se nas
suas conversas e usa o álcool para silenciá-los a fim de evitar –
quase na mesma proporção que o plano de Piter Botha na época do Apartheid – que
questionem as políticas de um regime com o qual ela já não se
identifica :
Tive o azar de viver num tempo em que vocês não tinham
consciência do mundo, eram apenas parte material desse mundo que
ajudei a criar os alicerces e a moldar. Vocês são o que são porque nós
assim vos fizemos e isso é o que me dói.” (p. 49).
Se antes as concepções político-ideológicas eram
consideradas ferramentas indispensáveis para a edificação de um pensamento
colectivo, volvidos alguns anos, a utopia transformara-se para Sebastião em dor
: a dor de saber que, política e ideologicamente, estavam no caminho errado; de
pensar que poderia ter reclamado uma educação para a liberdade; e a dor
de finalmente saber que :
O que vos espera é essa permanente desconfiança, essa
permanente suspeita que vos arrasta às barracas e
vos embriaga a inteligência, por não haver espaços onde respirar nesta terra
que os vossos avós libertaram e sonharam” (p. 49).
São estas as dores da Dona Sebastião, que, num sentido
ambivalente, também são as de Malfácio, Amade, Malíngua e Manguana. Dores
legítimas, mas que não a afastam do que a personagem julga ser o seu dever: o
de vigiar e arbitrar as conversas, escolhendo os temas correctos em detrimento
dos politicamente incorrectos. Na mesa de látex de sua barraca, Sebastião deixa
de ser uma mera dona, vendedeira, ex-professora. Ela se torna uma voz
autoritária com capacidade de formatar, manipular, silenciar os seus clientes
com o que eles querem (álcool e petiscos) e com o que eles não querem (o
passado). Por esta a razão tem um nome masculino. Quanto à escolha do
número dos ex-alunos (quatro), ele resulta de um plano também bem ponderado: Se
Sebastião é símbolo das mazelas políticas e sociais do seu tempo e da sua geração,
a sua morte significa o fim desta, o fim de um tempo, o fim dos tempos. Tal
qual os anjos do Apocalipse, os amigos Malfácio, Amade, Malíngua e Manguana,
têm aqui por missão exterminar um mal em favor próprio: Dona Sebastião.
Nestas últimas linhas, cabe-nos explicar a relação
recíproca presente no romance entre os mistérios e o ódio, realidades
diegéticas sem as quais a trama de A Legítima Dor da Dona
Sebastião seria impossível. Como já nos referimos, Dona Sebastião
constitui um símbolo de autoridade político-ideológica, mesmo manifestando uma
fobia acentuada a esse respeito. Dá-lhe esse estatuto o facto de “oferecer”
bebidas alcoólicas a crédito aos quatro (4) clientes cujos passados conhece
mais do que eles próprios. Quando o álcool revela-se incapaz de silenciá-los,
recua a História de sua pátria para recuperar as histórias de cada personagem –
assumindo que “somos personagens de uma história que não é nossa História” (p.
13) –, as quais nenhuma conhece na íntegra. É a esta altura que os mistérios
dos passados dos ex-alunos da Escola Primária 3 de Fevereiro são revelados,
causando-lhes uma perturbação permanente ao ponto de um deles, Amade, resolver
mudar de nome por se envergonhar da sua própria infância. As repercussões das
revelações de Sebastião são tão fortes que qualquer um deles – com a excepção
de Manguana, talvez – poderia ser o autor moral do assassínio. Assumimos,
portanto, que o ódio em A Legítima Dorda Dona Sebastião aparece à medida que os
mistérios são revelados. Sem a revelação desses mistérios, não poderia haver
ódio de forma alguma. Logo, o(s) mistério(s) e o(s) ódio(s) são duas realidades
que nesta narrativa estabelecem uma relação recíproca. Com esta relação a obra
em análise pretende nos conduzir ao passado histórico de uma sociedade, através
das personagens, pois é descortinando os mistérios de outrora, do ponto de
vista histórico e político, que se obtêm explicações para as legítimas dores do
presente, enfrentadas pelos moçambicanos a vários níveis sociais. E este jogo
conturbado envolve Sebastião, os seus ex-alunos, Sthoe (seu ex-marido, agente
policial) e o leitor.
Referências bibliográficas
Coelho, J. (2007) Hinyambaan. Maputo:
Ndjira.
Coelho, J. (2009) As Visitas do Dr. Valdez,
2ª Edição. Maputo: Ndjira.
Costa, J. e Melo, A. (1999) Dicionário de
Língua Portuguesa, 8ª Edição. Porto: Porto Editora.
David, D. (2012) A Narrativa de Paulina
Chiziane e o Romance Moçambicano Contemporâneo. In Chaves, R. e Macêdo, T.
(org.) Passagens para o Índico: Encontros Brasileiros com a Literatura
Moçambicana, pp. 113 – 121. Maputo: Marimbique.
Manjate, L. (2011) O Contador de Palavras.
Maputo: Alcance Editores.
Manjate, L. (2013) A Legítima Dor da Dona
Sebastião. Maputo: Alcance Editores.
Matusse, G. (1998) A Construção da Imagem de
Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani ba ka Khosa.
Maputo: Livraria Universitária.
Remédios, J. (2013) A Liberdade Como um Objecto da
Ficcionalidade em O Contador de Palavras de Lucílio Manjate. Suplemento
Cultural do Jornal Notícias, 20 e 27 de Fevereiro: p. 6.
Reis, C. e Lopes, A. (2000) Dicionário de
Narratologia, 7ª Edição. Coimbra: Livraria Almedina.
Santos, J. (2008) O Último Selo, 16ª
Edição. Lisboa: Gradiva.
Silva, R. (2012) Uma Leitura por Fora do Texto em As
Visitas do Dr. Valdez, de João Paulo Borges Coelho. In Chaves, R. e Macêdo, T.
(org.)Passagens para o Índico: Encontros Brasileiros com a Literatura
Moçambicana, pp. 257 – 264. Maputo: Marimbique.
Trigo, S. (s/d) Ensaios de Literatura
Comparada. Lisboa: Vega.
Trotsky, L. (1963) Revolução e Contra-Revolução.
Rio de Janeiro: Laemmert.