SANGUE NEGRO
Ó minha África misteriosa e natural,
minha virgem violentada,
minha Mãe!
Como eu andava há tanto desterrada,
de ti alheada,
distante e egocêntrica,
por estas ruas da cidade
engravidadas de estrangeiros!
Minha Mãe, perdoa!
Como se eu pudesse viver assim,
desta maneira, eternamente,
ignorando a carícia fraternamente
morna do teu luar
(meu princípio e meu fim)...
Como se não existisse para além
dos cinemas e dos cafés, a ansiedade
dos teus horizontes estranhos, por desvendar...
Como se nos teus matos cacimbados
não cantassem em surdina a sua liberdade
as aves mais belas, cujos nomes são mistérios ainda fechados!
Como se teus filhos – régias estátuas sem par – ,
altivos, em bronze talhados,
endurecidos no lume infernal
do teu sol causticante, tropical,
como se teus filhos intemeratos, sofrendo, lutando,
à terra amarrados,
como escravos, trabalhando,
amando, cantando
– meus irmãos não fossem!
Ó minha Mãe África, “ngoma” pagã,
escrava sensual,
mística, sortílega, – perdoa
À tua filha tresvairada
– abre-te e perdoa!
Que a força da sua seiva vence tudo!
E nada mais foi preciso, que o feitiço ímpar
dos teus tantãs de guerra chamando,
dundundundun-tã-tã-dundundun-tã-tã,
nada mais que a loucura elementar
dos teus batuques bárbaros, terrivelmente belos...
– para que eu vibrasse,
– para que eu gritasse,
– para que eu sentisse, funda, no sangue, a tua voz, Mãe!
E, vencida, reconhecesse os nossos elos...
E regressasse à minha origem milenar.
Mãe, minha mãe África
das canções escravas ao luar,
não posso, não posso repudiar
o sangue bárbaro que me legaste...
Porque em mim, em minha alma, em meus nervos,
ele é mais forte que tudo,
eu vivo, eu sofro, eu rio através dele, Mãe!
(SOUSA, Noémia de, “Sangue Negro”, Mensagem, Luanda, nº 2/4, 1951, In FERREIRA, Manuel. No Reino de Caliban III. Lisboa: Plátano Editora,1984, p. 91–92)