NA BERMA DE NENHUMA ESTRADA
Estou aqui no sopé da estrada, à espera que alguém me leve. Um qualquer, tanto faz.
Basta que passe e me leve. É meu sonho antigo: sair deste despovoado, alcançar o longe.
Até já cansei este sonho. Meu tio sempre me avisou: não durma perto da estrada que as
poeiras irão sujar seus sonhos. E aconteceu. Mas eu, nem se acredita, eu sempre gostei
de poeira porque me traz ilusão dos caminhos que não conheço.
Assim, vou santificando os dias, sempre iguais, no mesmo-que-mesmo. Me ajeito de
belezas emprestadas, peço roupas às vizinhas, pinto-me com sobras de maquilhagens
que apanho na loja do Tio Josseldo. Me exibo na margem, os camiões vão passando, uns
e todos. Nenhum pára para mim. A vila de Passo-Longe é tão longe que nem saudade
aqui chega. Ao fim do dia, me olho no espelho da cantina e nem me reconheço. Porque
dentro de mim há qualquer coisa de falecida, a secreta desistência de mim – nunca ninguém me vai carregar.
Aquele é o único espelho da nossa vila. O Tio até cobra quem nele se espreita. É por
tempo, nunca mais de cinco minutos, não vá desbotar o brilho do espelho. De regresso
à loja do Tio Josseldo, eu fico olhando a tabuleta - a Boutique Pinta-Bocas – e agradeço
aquela dádiva de existir um parente que me seja familiar. Ali durmo, bem enroscada,
que é para a noite nem me notar. Embrulhada, à moda de quarto minguante.
Dia seguinte, volto a pintar os lábios enquanto meu tio vai repetindo sua ladainha:
– Pode pintar os dois, de cima e de baixo.
– Obrigada, tio.
– Agora, fala a verdade: não é que ninguém lhe queira levar. Você é que sempre inventa
razão para ficar . Confessa lá, sobrinha .
– Não é verdade, tio. Eu só quero ir daqui.
– Você há-de ficar na soleira da estrada.
Há, sim, motoristas que páram. Pensam que sou prostituta. Confundem o intento de
minhas vestes. Mas não é meu corpo que ofereço. O que entrego é minha vida. Só mostro minhas redonduras por vaidade, convidação das carnes. Minha vaidade é estar viva.
Os outros são outros, juntos é que somos gente. Só eu padeço de mim, envelhecida de
esperar, mais baça que o espelho da loja.
Não quero alegria de morcego que sai para o mundo quando já tudo anoiteceu.
Quero sair quando ainda tenho mocidades para viver, peito encostado na alma. Tenho
inveja da chuva: tomba e logo muda de nome. Termina a chuvinha e começa a água,
acaba o corpo e começa a substância.
Veja-se: brincar é a primeira festa que a vida nos oferece. Depois, vem o sonho,
segundo festejo. Agora, o que eu quero: a vida me ofereça uma festa para mim. Porque,
antes, eu não tive criancice nem sonho. Meu pai saiu cedo, minha mãe, em seguida,
perdeu o prumo do juízo. De meus pais só tenho lembrança de uma tarde que se repete
como se fosse o tempo inteiro. Ainda estado e havido, meu pai não me dera nenhum
nome. Minha mãe reclamava:
– Mas como lhe hei-de chamar?
– Há-de-se ver, mulher. Há-de-se ver.
Respondia como sempre falava: há-de-se ver. Não fazia nenhuma ideia.
– Lhe vá chamando só assim: menina .
Meu pai foi-se, escoado na estrada. Nesta mesma estrada onde eu me alinho, mais
minhas monotonalidades. Foi nas minas, não voltou. Minha mãe ficou tão pasmada no
regresso dele, que ela nunca saiu daqueles aguardos. Os vizinhos até inventaram um
fingimento : fazia-se de conta que chegavam lembranças, encomendas que eles mesmos
improvisavam.
– Seu marido lhe trouxe isto, Dona Constança.
Tudo de mentira. Minha mãe se comovia até às lágrimas. Homem bom, nunca
esquecido dos deveres. Tão bom que nem existia, concluíam em silêncio os vizinhos.
Como eu queria não saber daquela mentira, acreditar como minha mãe acreditava.
Por isso eu, agora, quero tanto ter saudade de alguém. No entanto, não tenho ninguém em quem deitar amor. Podia gostar do Tio Josseldo que me tem tomado conta.
Mas não quero. Amor é como dever de religião – a gente não tem folga. Eu quero é distracção para o meu peito. Alívio de canseira. Quero uma estrada para meu coração . De
ida sem volta. Só para o além.
(COUTO, Mia. “Na berma de nenhuma estrada”.
In: Na Berma de Nenhuma Estrada e Outros Contos.
Lisboa: Caminho, 2001, p. 117–119)