MIA COUTO

 (1955), nome literário de António Emílio Leite Couto, ficcionista e biólogo, uma voz original e inovadora não só na literatura moçambicana. A sua escrita carateriza-se por uma subversão do português, criando (“brincriando”) uma linguagem nova, exposta ao cruzamentro de culturas, ao mesmo tempo coloquial (fala popular) e artística (no sentido de uma criação artificial). O universo das suas narrativas, rural, de sabor ancestral e com recurso ao mágico, próprio da tradição oral, denuncia a tragédia moçambicana expressa na guerra civil, bem como a conflituosidade entre o tradicional e o moderno. Destacam-se os romances Terra Sonâmbula (1993), O Último Voo do Flamingo (2000), Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra (2002), A Confissão da Leoa (2012) a as coletâneas de contos (Vozes Anoitecidas, 1986, Cada Homem É Uma Raça, 1990, Na Berma de Nenhuma Estrada e Outros Contos, 2001, O Fio das Missangas, 2003 etc.)

O DIA EM QUE EXPLODIU MABATA-BATA

De repente, o boi explodiu. Rebentou sem um múúú. No capim em volta choveram

pedaços e fatias, grão e folhas de boi. A carne eram já borboletas vermelhas. Os ossos

eram moedas espalhadas. Os chifres ficaram num qualquer ramo, balouçando a imitar

a vida, no invisível do vento. O espanto não cabia em Azarias, o pequeno pastor. Ainda

há um instante ele admirava o grande boi malhado, chamado de Mabata-bata. O bicho

pastava mais vagaroso que a preguiça. Era o maior da manada, régulo da chifraria,

e estava destinado como prenda de lobolo do tio Raul, dono da criação. Azarias trabalhava para ele desde que ficara órfão. Despegava antes da luz para que os bois comessem

o cacimbo das primeiras horas.

Olhou a desgraça: o boi poeirado, eco de silêncio, sombra de nada.

“Deve ser foi um relâmpago”, pensou.

Mas relâmpago não podia. O céu estava liso, azul sem mancha. De onde saíra o raio?

Ou foi a terra que relampejou?

Interrogou o horizonte, por cima das árvores. Talvez o ndlati, a ave do relâmpago,

ainda rodasse os céus. Apontou os olhos na montanha em frente. A morada do ndlati

era ali, onde se juntam os todos rios para nascerem da mesma vontade da água. O ndlati

vive nas suas quatro cores escondidas e só se destapa quando as nuvens rugem na rouquidão do céu. É então que o ndlati sobe aos céus, enlouquecido. Nas alturas se veste de

chamas, e lança o seu voo incendiado sobre os seres da terra. Às vezes atira-se no chão,

buracando-o. Fica na cova e aí deita a sua urina.

Uma vez foi preciso chamar as ciências do velho feiticeiro para escavar aquele ninho

e retirar os ácidos depósitos. Talvez o Mabata-bata pisara uma réstia maligna do ndlati.

Mas quem podia acreditar? O tio, não. Havia de querer ver o boi falecido, ao menos ser

apresentado uma prova do desastre. Já conhecia bois relampejados: ficavam corpos

queimados, cinzas arrumadas a lembrar o corpo. O fogo mastiga, não engole de uma só

vez, conforme sucedeu-se.

Reparou em volta: os outros bois, assustados, espalharam-se pelo mato. O  medo

escorregou dos olhos do pequeno pastor.

– Não apareças sem um boi, Azarias. Só digo: é melhor nem apareceres.

A ameaça do tio soprava-lhe os ouvidos. Aquela angústia comia-lhe o ar todo. Que

podia fazer? Os pensamentos corriam-lhe como sombras mas não encontravam saída.

Havia uma só solução: era fugir, tentar os caminhos onde não sabia mais nada. Fugir é

morrer de um lugar e ele, com os seus calções rotos, um saco velho a tiracolo, que saudade deixava? Maus tratos, atrás dos bois. Os filhos dos outros tinham direito da escola.

Ele não, não era filho. O serviço arrancava-o cedo da cama e devolvia-o ao sono quando

dentro dele já não havia resto de infância. Brincar era só com os animais: nadar o rio na

boleia do rabo do Mabata-bata, apostar nas brigas dos mais fortes. Em casa, o tio adivinhava-lhe o futuro:

 – Este, da maneira que vive misturado com a criação há-de casar com uma vaca.

E todos se riam, sem quererem saber da sua alma pequenina, dos seus sonhos maltratados. Por isso, olhou sem pena para o campo que ia deixar. Calculou o dentro do seu

saco: uma fisga, frutos do djambalau, um canivete enferrujado. Tão pouco não pode

deixar saudade. Partiu na direcção do rio. Sentia que não fugia: estava apenas a começar

o seu caminho. Quando chegou ao rio, atravessou a fronteira da água. Na outra margem

parou à espera nem sabia de quê.

(COUTO, Mia. “O dia em explodiu Mabata-bata” In Vozes Anoitecidas.

Lisboa: Caminho, 1987, p. 47–49)

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