Selecção e Colocação dos Pronomes Clíticos
No português moderno, os padrões de colocação dos pronomes clíticos são uma das propriedades sintácticas que designam as gramáticas de diferentes variedades nacionais da língua portuguesa.
Assim, todos eles exigem um hospedeiro verbal, o que se traduz num requisito de adjacência
entre o pronome clítico e uma forma verbal, finita ou não finita,
contrariamente ao que acontecia no português antigo e no mesmo português
clássico, onde os casos de interpolação de constituintes eram frequentes. Assim
os exemplos (1), em que um constituinte negativo, um advérbio, um pronome
sujeito, um pronome forte objecto directo se interpõe entre a forma clítica e a
forma verbal constante com os exemplos (2), em que adjacência entre o clítico e
o verbo não é quebrado.
Exemplos:
1.
a) *“e se lhas
nõ davam” (NO: 1406, apud Martins,
1994: 163)
b) *“mais dono do que lhy ante f[azia]”(NO: 1300, apud Martins, 1994:165)
c) *“asi como a até aqui derõ” (NO: 1295, apud
Martins, 1994: 167)
d) *“Isto que lles eu mãdo” (NO: 1275, apud
Martins, 1994: 171)
e) *“Poys que lle ysto ouve dito” (Ogando (1980:281, apud Martins, 1994:174))
2.
a)
E se não lhas davam…
b) … mais mal do que lhe fazia ali…
c) … assim como a deram até aqui…
d) Isto que eu lhes mando…
e) Depois de lhe ter dito isto…
Como os exemplos (2), (3), e (4) mostram, todas as
formas verbais, com excepção das de particípio passado, se qualificam como
hospedeiros verbais para os pronomes clíticos:
3.
a)
O João deu-lhe um livro.
b) Enquanto a Maria esteve doente, o
João visitava-a todos os dias.
c) Canta-lhe os parabéns!
d) Não te reconheceria se te
visse na rua.
e) O Pedro quer naturalizar-se luxemburguês.
f) Comportando-se deste modo, ela não consegue ter
amigos.
4.
a)
O João tinha dado-lhe um
livro.
b) O João não tinha ontem lhe dado um livro.
c) Cantados-lhe os parabéns, bebemos todos champanhe.
Posição enclítica e proclítica
Como se pode observar nos exemplos (2) e (3) acima,
os pronomes clíticos ocorrem em português moderno numa posição adjacente à
esquerda ou à direita a um hospedeiro verbal, posições denominadas
respectivamente, proclítica e enclítica.
Contudo, na
maioria dos contextos, estas duas posições não se encontram em variação livre,
como se pode observar pelo contraste entre (2), e (5), (3) e (6).
5. a) E se não davam-lhas…
b) ... mais mal do que fazia-lhe ali…
c) ... assim como deram-na até aqui…
d) Isto que eu mando-lhes…
e) Depois de ter-lhe dito isto…
6.
a)
O João lhe deu um livro.
b) Enquanto a Maria esteve doente, o João a visitava todos os dias.
c) Lhe canta
os parabéns!
d) Não reconhecia-te se visse-te na
rua.
e) O Pedro quer se
naturalizar luxemburguês.
f) Se comportando
deste modo, ela não consegue ter amigos.
A
gramaticalidade dos exemplos (6c, f) mostra que a variedade europeia do
português moderno respeita uma generalização sobre colocação de formas clíticas
conhecida como Lei de Tobler-Moussafia, que se pode formular do seguinte modo:
7. Lei de Tobler-Moussafia
As formas clíticas não podem ocupar a posição
inicial absoluta de frase.
Contudo, os
restantes contrastes de gramaticalidade, não podem ser descritos por recurso à
generalização formulada em (7).
A ênclise, padrão de colocação básico
A tradição
gramatical luso-brasileira produziu, no final do século XIX e princípio do
século XX, uma bibliografia abundante e rica sobre as condições que presidem à
selecção do padrão enclítico e do padrão proclítico no português moderno. Em
toda esta bibliografia se defende que a posição enclítica é o padrão básico,
não marcado, e que a posição proclítica é induzida por factores de natureza
sintáctico-semântica ou prosódica.
Argumentos de
natureza histórica e argumentos fornecidos por dados de aquisição corroboram as
análises destes gramáticos.
Quanto ao
primeiro tipo de argumentos, Martins (1994) mostra que, no século XVII, o
português apresentava dominantemente o padrão proclítico no corpus por ela estudado, à semelhança do
que acontecia com as restantes línguas românticas. Mas, a partir de meados do
século XVII, as percentagens de próclise e de ênclise invertem-se bruscamente.
Esta inversão
brusca dos padrões proclíticos e enclíticos pode ser atribuída a uma mudança na
gramática do português ocorrida em meados do século XVIII com várias
consequências.
Quanto ao
segundo tipo de argumentos, as primeiras produções com pronomes clíticos das
crianças portuguesas exibem generalizadamente o padrão enclítico,
contrariamente ao que está descrito para outras línguas românticas.
8. a) não chama-se nada (M., 20 meses)
b) é que não estragou-se (J. G., 39 meses)
c) porque é que foste-me interromper? (R., 29 meses)
d) foi alguém que meteu-me nesta fotografia. (J. G., 39 meses)
e) mas ele já foi-se embora (P., 39 meses)
f) que(ro) pôr os papeles aqui pa(ra) não rasgar-se (P., 39 meses).
Entretanto, de
uma forma consistente com os dados de aquisição exemplificados em (8), as
gerações mais jovens tendem a produzir crescentemente clíticos enclíticos, em
contextos em que a variedade padrão exige próclise, como se pode observar em
(9):
9. (a) porque não apercebeu-se que…
(12 anos, modo escrito)
b) correspondem à classe ------852-----
Com base nos
argumentos acima apresentados, é possível concluir que a ênclise é o padrão básico de colocação dos pronomes clíticos na
variedade europeia no português moderno.
A ênclise é igualmente o padrão que se obtém
em muitas frases não finitas como se pode observar em (10), em que o pronome
enclítico ocorre adjacente respectivamente, a uma forma de infinitivo não
flexionado de infinitivo flexionado e de gerúndio.
10. a) O João queria [emprestar-lhe o carro].
b) [Emprestares-lhe sistematicamente o carro]
não é educativo.
c) [Emprestar-lhe o carro], ele chega a horas ao exame.
Considerem-se
agora os exemplos (11)-(14)
11. a) Os alunos ofereceram-lhe todos flores.
b) Os alunos ofereceram-lhe também flores.
c) Os alunos ofereceram-lhe o quê?
12. a) Os alunos lhe ofereceram todos flores.
b) Os alunos lhe ofereceram também flores.
c) Os alunos lhe ofereceram o quê?
13. a) Todos alunos
ofereceram-lhe flores.
b) Os alunos também
ofereceram-lhe flores.
c) O que ofereceram-lhe os
aluno?
14. a) Todos os alunos
lhe ofereceram flores.
b) Os alunos também lhe ofereceram flores.
c) O que lhe ofereceram os alunos?
As
palavras sublinhadas nos exemplos (11)-(14) incluem-se entre os chamados atractores de próclise ou
proclisadores. Contudo, a presença de tais elementos não induz por si só
próclise, como atesta a agramaticalidade de (12). Para que estes elementos
induzam próclise, é necessário que c-comandem
e precedam o hospedeiro verbal do clítico, como contraste entre (13) e (14)
mostra.
Com
base em paradigmas como os apresentados em (15) e (16), Frota e Vigário (1996)
caracterizam os atractores de próclise como palavras funcionais pesadas e
sugeriram que os enclíticos passam a proclíticos na presença de palavras funcionais
pesadas que c-comandem e precedam o clítico no mesmo sintagma entoacional
(SEnt):
15. a) Acho que [SEnt
ao João, a Maria ofereceu-lhe um livro.
a)
Disseram-me
que [SEnt embora tivesse sido difícil, concederam-lhe a
bolsa.
16. a) Acho [SEnt que ao João, a Maria lhe ofereceu um livro.
b)
Disseram-me
[SEnt que embora tivesse sido difícil, lhe concederam a bolsa.
A distribuição
da ênclise e da próclise na variedade europeia padrão pode então, ser captada
pela seguine generalização: na ausência
de atractores de próclise que c-comandem e precedam o clítico no mesmo sintagma
entoacional, a ênclise é o padrão que se obtém.
Os atractores de próclise
As palavras
funcionais pesadas que induzem próclise em português moderno distribuem-se por
diferentes classes sintáctico-semânticas.
Os operadores de
negação frásicos e sintagmas negativos constituem um primeiro grupo de palavras
funcionais indutores de próclise, como se pode observar nos exemplos (17)-(20).
17. a) O João não / nunca me telefonou.
c) O João chegou sem me avisar.
18. a) O João não / nunca
telefonou-me.
c)
O
João chegou sem avisar-me
19. a) Ninguém / nada o demoveu.
b) Nenhuma pessoa / Pessoa alguma me informou dessa alteração.
20. a) Ninguém / nada demoveu-o.
b) Nenhuma pessoa / Pessoa alguma
informou-me dessa alteração.
Também
sintagmas-Q interrogativos, relativos e exclamativos se incluem entre as
palavras funcionais indutoras de próclise, como mostram os exemplos (21) e
(22).
21. a) Quem te disse que eu ia hoje jantar contigo?
b) A pessoa a quem me apresentaste na conferência é interessante.
c) Que belo estalo (que) lhe deste!
22. a) Quem disse-te que eu ia hoje
jantar contigo?
b) A pessoa a quem apresentaste-me na conferência é interessante.
c) Que belo estalo (que) deste-lhe!
Os complementos
simples e complexos, i.e., seleccionados por uma preposição ou um advérbio ou
que resultam de reanálise, são igualmente palavras funcionais indutoras de
próclise, como se pode ver através do contraste entre (23) e (24).
23. a) Sei que o João a viu no cinema ontem.
b) Perguntaram ao Zé se o Pedro lhe entregou o livro.
c) O Pedro pediu à Maria para lhe telefonar logo.
d) Avisa a Maria logo que / mal a vejas.
e) Embora se
despachasse tarde, o João ainda passou cá por casa.
f) Visto que / porque se despachou tarde, o João não passou cá
por casa.
24. a) Sei que o João viu-a no cinema ontem.
b) Perguntaram ao Zé se o Pedro entregou-lhe o livro.
c) O Pedro pediu à Maria para telefonar-lhe logo.
d) Avisa a Maria logo que / mal /
veja-la.
e) Embora despachasse-se tarde, o João ainda passou cá por casa.
f) Visto que / porque despachou-se tarde, o João não passou cá por casa.
Os advérbios de
focalização, de referência predicativa, confirmativos, de atitude profissional
e aspectuais incluem-se igualmente entre os proclisadores como mostram,
respectivamente, os exemplos (25), (26), (27), (28) e (29).
25. a) Só / apenas o João as cumprimentou.
b) Só / apenas o João cumprimentou-as.
26. a) A Maria também nos viu.
b) A Maria também viu-nos.
27. a) O João sempre te convidou para a festa.
b) O João sempre convidou-te para a festa.
28. a) Talvez / oxalá ele lhe telefone.
b) Talvez / oxalá ele telefone-lhe.
29. a) O João já / ainda se lembra desse incidente.
b) O João já / ainda lembra-se desse incidente.
Um subconjunto
de conjunção coordenativa qualifica-se igualmente como proclisador. Trata-se de
conjunção correlativa com um elemento de polaridade negativa (não só …mas /
como também, nem …nem) e de conjunções correlativas disjuntivas (ou…ou, era… era,
qualquer…qualquer, seja…seja), como se pode observar nos exemplos (30) e (31).
30. a) Não só a Maria o insultou como (também) o Pedro lhe bateu.
b) Nem a Maria o insultou, nem o Pedro lhe
bateu.
c) Ou a Maria lhe faz todas as vontades, ou o Pedro se zanga.
d) Quer te
agrade, quer não te agrade,
vou á festa.
31. a) Não só a Maria insultou-o como (também) o Pedro bateu-lhe.
b) Nem a Maria insultou-o, nem o Pedro bateu-lhe.
c) Ou a Maria faz-lhe todas as vontades, ou o Pedro zanga-se.
d) Quer agrade-te, quer não agrade-te,
vou á festa.
Finalmente, em
construções apresentativas iniciadas por um constituinte ligado discursivamente
e em que o sujeito tem o estatuto de foco informacional, o padrão de colocação
exigido é a próclise. Como os exemplos (32) mostram, os constituintes ligados
discursivamente são tipicamente constituintes locativos e dêicticos
demonstrativos.
32. a) [SEnt Aqui se assinou a paz.
b) [SEnt Isso te dissemos todos.
33. a) [SEnt Aqui assinou-se a paz.
b) [SEnt Isso dissemos-te todos.
Em síntese, incluem-se
entre os proclisadores operadores de negação e sintagmas negativos,
sintagmas-Q, complementadores, advérbios de focalização, de referência
predicativa, confirmativos, de atitude proporcional e aspectuais, subtipos de
quantificadores e de conectores de coordenação, além de constituintes ligados
discursivamente em construções apresentativas (de inversão locativa e outras).
Subido de clítico
O fenómeno
conhecido como Subida de Clítico
consiste na selecção de um verbo do do qual o pronome clítico não é dependente
para hospedeiro verbal. As frases seguintes exemplificam este fenómeno,
encontrando-se nelas sublinhado o verbo principal de que o clítico depende.
34. a) O João tinha-a já convidado várias vezes.
b) O Convite foi-lhe
finalmente enviado.
c) O João ia-se
esquecendo do convite.
d) O João não a
tinha convidado.
e) O convite não lhe
foi nunca enviado.
f) O João não se
ia esquecendo do convite.
35. a) O João não lhe começou a ensinar russo.
b) O João não lhe
deixou de falar.
c) O João não se
acabou por esquecer da festa.
36. a) O João não a vai provavelmente convidar.
b) O João não a
pode certamente convidar.
37. a) O João não a quer convidar.
b) O João não lhe
ousa telefonar.
38. a) O João não os viu entregar o convite.
b) O João não os
mandou entregar o convite.
39. a) O patrão mandou-lhes lavar o chão antes de saírem.
b) Os pais deixaram-lhes comer o gelado ante do almoço.
Os exemplos (34)
ilustram casos de Subida de Clíticos
com verbos auxiliares que seleccionam formas participiais e gerundivas. Nestes
casos, como o contraste entre (34) e (40) mostra, não existe alternativa à Subida de Clíticos, devendo o pronome
clítico ocorrer obrigatoriamente proclítico ou enclítico ao verbo auxiliar.
40. a) O João tinha já a convencido várias vezes / convencido-a várias vezes.
b) O convite foi finalmente enviado-lhe.
c) O João ia esquecendo-se do convite.
d) O João não tinha a convidado / convidado-a.
e) O convite não foi nunca lhe enviado / enviado-lhe.
f) O João não ia se
esquecendo / esquecendo-se
do convite.
A
obrigatoriedade de Subida de Clíticos
nestes contextos pode ser atribuída à estrutura funcional deficitária dos
complementos participiais e gerundivas seleccionados pelos verbos auxiliares em
questão: com efeito, estes complementos respondem negativamente a todos os
teste que identificam núcleos funcionais frásicos, em particular, núcleos
contendo informações temporal.
Os exemplos (35)
mostram que, em construções com verbos semiauxiliares aspectuais que
seleccionam complementos infinitivos preposicionados, na presença de um
proclisador no domínio superior, os clíticos podem ocorrer no domínio superior
ou no domínio encaixado, quando a preposição é a, preferencial e obrigatoriamente adjacentes à forma verbal
encaixada quando as preposições são, respectivamente, de e por (veja-se o
contraste entre (41b, c) e (42b, c)).
41. a) O João começou-lhe a ensinar russo.
b) O João deixou-lhe
de falar.
c) O João acabou-se
por esquecer da festa.
42. a) O João começou a ensinar-lhe russo.
b) O João deixou de lhe falar.
c) O João acabou por se esquecer da festa.
O comportamento
dos verbos semiauxiliares que seleccionam complementos preposicionados
distingue-se do de outros semiauxiliares que seleccionam complementos não
preposicionados, como os exemplificados em (36), que admitem tanto Subida de Clítica como legitimação do
clítico no domínio encaixado:
43. a) O João não vai provavelmente convidá-la.
b) O João não pode certamente convidá-la.
Sobrevivência de uma gramática antiga: mesóclise e interpolação
Na variedade
europeia do português moderno sobrevivem traços de uma gramática antiga,
claramente em desaparecimento.
O primeiro traço: é a colocação alternativa à ênclise nas formas de
futuro e de condicional exigida no português europeu padrão, denominada mesóclise, que os exemplos (44)
ilustram.
44. a) Os serviços avisá-la-ão da data da prova.
45. b) Se me fizesse essa pergunta, recusar-me-ia a responder.
Este padrão de
colocação tem a sua origem na gramática
do português antigo, em as formas do futuro e de condicional eram ainda
analisadas como formas analíticas, constituídas pela forma infinitiva do verbo
principal e pelo auxiliar haver no
presente e no imperfeito do indicativo, como se pode observar em (46):
46. a) E enton dar-lhe`ia Deus lumes de seus olhos
(Mettos e Silva, 1989:850, apud Martins, 1994:158)
b) Fazello
ey (Ogando (1980:262), apud
Martins, 1994:159)
Contudo, já
nesta fase da história da língua, parece haver reanálise das formas analíticas
do futuro e do condicional como formas sintéticas, registando-se numerosos
casos de ênclise, em particular com verbos irregulares:
47. a) querrei-vo-lh'eu responder
(Ogando, 1980:262, apud Martins, 1994: 159)
b) pêro leixa-me tocar teu pulsso e darey-te meezinha
(Lobo, 1991: 158, apud Martins, 1994:159)
c) Se o alguen non conhocesse terria-se por despreçado.
(Mattos e Silva, 1989:850, apud Martins, 1994:158)
A variação livre
entre ênclise e mesóclise que os exemplos (46) e (47) ilustram passa, no
português europeu padrão moderno, a distribuição complementar entre ênclise e
mesóclise. Mas dados de aquisição, produções de falantes de variedades
populares e, em geral, de gerações mais novas, revelam que a ênclise está a
invadir os contextos de mesóclise:
48. a) Telefonarei-te mais vezes
(12 anos, 6º ano de escolaridade, modo escrito)
b) Na conjuntura socioeconómica, poderá-se verificar um saldo bastante positivo
(prova específica de acesso ao ensino superior, modo
escrito)
O segundo traço: que sobrevive no português europeu padrão moderno
como resíduo de uma gramática antiga é a possibilidade de ocorrência do
operador de negação frásica não entre
um pronome proclítico e o hospedeiro verbal, que os exemplos (49) ilustram.
49. a) O João pediu que o não acordassem.
b) Vê se te não
esqueces do que prometeste.
Este fenómeno
denominado interpolação, era generalizado no português antigo e clássico,
podendo interpor-se entre a forma clítica e a forma verbal uma grande variedade
de constituintes, como ilustrado pelos exemplos (1) aqui repetidos como (50).
50. a)
*“e se lhas nõ davam” (NO:
1406, apud Martins, 1994: 163)
b) *“mais dono do que lhy ante f[azia]”(NO: 1300, apud Martins, 1994:165)
c) *“asi como a até aqui derõ” (NO: 1295, apud
Martins, 1994: 167)
d) *“Isto que lles eu mãdo” (NO: 1275, apud
Martins, 1994: 171)
e) *“Poys que lle ysto ouve dito” (Ogando (1980:281, apud Martins, 1994:174))
A perda de interpolação de constituintes distintos
de não ocorre no século XVII e tem
recebido várias explicações, podendo formular-se do seguinte modo a
generalização descritiva que capta a nova gramática que emerge neste período:
os pronomes clíticos passam a especializar como hospedeiro uma forma verbal,
não sendo, por isso, admitida quebra de adjacência entre clítico e o verbo.
Assim, a sobrevivência da interpolação de não deve ser atribuída a propriedades
específicas deste operador de negação, que fazem dele um núcleo de tipo
clítico, pelo que pode interpor-se entre pronomes clíticos e verbo. Constituem
argumentos a favor do estatuto de núcleo de tipo clítico deste operador de
negação o facto de ele não admitir que constituintes distintos de pronomes
clíticos o separem da forma verbal (51), de se incorporar no verbo e de se
mover com ele até ao núcleo Com (52).
51. a) O João já não lê esses livros às crianças.
b) O João não já lê esses livros às crianças.
c) O João não lhes lê esses livros.
52. a) O que não tem [SFlex
o João lido às crianças]?
b) O que tem [SFlex o João não
lido às crianças]?
Conclusão
Terminado o
trabalho, concluímos que apesar da sua diversidade tipológica, os pronomes
clíticos tem um comportamento uniforme quanto aos padrões de colocação.
Quanto a
ênclise padrão de colocação básica, constatamos que os estudos de
Martins (1994), que mostravam a semelhança do que acontecia com as restantes
línguas românticas, a partir de meados do século XVII, as percentagens de
próclise e de ênclise inverteram-se bruscamente por motivos de uma mudança na
gramática do português ocorrida em meados do século XVII.
Com base nos
argumentos acima abordados, é possível concluir que a ênclise é o padrão básico de colocação dos pronomes clíticos na
variedade europeia no português moderno.
Constatou-se
também que alguns traços da gramática antiga sobrevivem na variedade europeia
do português moderno e fazem-se sentir na mesóclise e interpolação embora em
desaparecimento.
Bibliografia
CUNHA, Celso e
CINTRA, Lindley, Nova gramática do
português Contemporâneo, 15ª ed. Lisboa, Edições João Sá da Costa. 1990
Maria Helena
Mira Mateus,